O Ministério do Meio Ambiente, em uma manobra inesperada no fim do mês de abril, tentou privatizar boa parte do monitoramento remoto do desmatamento, trabalho que, até agora, tem sido dirigido de forma bem-sucedida pelo INPE, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. A manobra foi tão repentina que o INPE ficou sabendo dela por meio de um jornalista.
De acordo com o plano, empresas privadas teriam controle sobre o monitoramento da Amazônia, do Cerrado (onde o desmatamento é mais intenso no Brasil) e das reservas indígenas (que estão sob a mira da administração Temer). Especialistas veem a manobra como uma submissão ao poderoso lobby do agronegócio, que quer ter maior controle sobre a Amazônia, o Cerrado e as reservas indígenas.
A manobra apressada foi recebida com abalo por especialistas de dentro e de fora do governo, com acusações de que o processo de licitação de 8 dias foi absurdamente curto e com alguns denominando a proposta como incompetente. Os críticos sugerem que o processo de licitação para a privatização pode ter sido planejado para colocar o controle do monitoramento remoto do desmatamento nas mãos de uma empresa estrangeira.
Os protestos efusivos de 6.000 especialistas levaram o Ministério do Meio Ambiente a engavetar a privatização por enquanto, mas a medida ainda poderá ser revista. Uma preocupação dos especialistas é que a empresa envolvida poderia desempenhar papel decisivo em avaliar se o Brasil estaria ou não cumprindo suas metas de redução de carbono às quais se comprometeu no Acordo do Clima de Paris.
Em meio à intensa agitação política que se desdobra em Brasília, os principais meios de comunicação vem ignorando extensivamente uma manobra do governo que – se levada adiante – poderia afetar gravemente o monitoramento por satélite do desmatamento na Amazônia.
O esquema, conforme acusam alguns críticos, foi provavelmente induzido pela bancada ruralista, o lobby do agronegócio no país, ansiosa por dar um fim à análise independente de dados do monitoramento remoto que mostraram um aumento dramático do desmatamento nos últimos anos – um aumento amplamente impulsionado por ladrões de terra e criadores de gado na Amazônia, e pela indústria da soja no Cerrado.
Em 20 de abril, o Ministério do Meio Ambiente publicou um edital de licitação para empresas privadas lançarem propostas para a aquisição de alguns dos serviços de monitoramento remoto que, até agora, têm sido conduzidos pelo INPE (o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do governo). A licitação deu um período bastante curto – oito dias – para as empresas enviarem suas propostas.
A um custo de R$78 milhões (US$24 milhões), caberia à empresa vencedora da concorrência o monitoramento do desmatamento na Amazônia e em outras regiões, incluindo o Cerrado e reservas indígenas. O Cerrado, atualmente, apresenta a maior taxa de desmatamento no Brasil, enquanto que as reservas indígenas e os direitos às terras indígenas estão sob a mira da administração Temer.
É importante dizer que as empresas privadas selecionadas desempenhariam papel fundamental em avaliar se o Brasil estaria cumprindo ou não suas metas de redução de carbono às quais se comprometeu na cúpula do Clima de Paris, em dezembro de 2015.
A manobra do ministério pegou praticamente todos de surpresa. Ricardo Magnus Osório Galvão, diretor do INPE, ficou sabendo do que estava acontecendo por meio de um jornalista. Nem mesmo o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), ao qual o INPE está subordinado, foi consultado.
Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), e Helena Nadar, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), enviaram uma carta em conjunto para o Presidente Temer, em que expressavam “surpresa” e “indignação” diante da forma despótica com que a decisão havia sido tomada: “Esse posicionamento unilateral adotado pelo Ministério do Meio Ambiente cria uma ruptura em sua história de coexistência harmoniosa com o MCTIC”.
Mas não foi a forma abrupta com que a nova medida foi anunciada que atraiu a maior crítica dos especialistas em desmatamento, mas sim o conteúdo do edital de licitação. Especialistas da área envolveram-se na questão, expressando indignação diante das mudanças propostas.
Em uma entrevista para o Mongabay, Arnaldo Carneiro, pesquisador veterano do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e especialista em Ciência da Geoinformação, afirmou: “A forma como ele [o edital de licitação] foi elaborado demonstra total incompetência no assunto, pois mistura serviços, equipamentos e monitoramento. Eles [as pessoas que elaboraram a licitação] mostraram tamanha incompetência que não foram nem mesmo capazes de avaliar a qualidade dos serviços oferecidos pelo INPE”.
Outros especialistas disseram ao site Direto da Ciência que a nova negociação permitiria ao Ministério do Meio Ambiente avaliar o trabalho realizado pela empresa contratada, acabando com a atual configuração por meio da qual as avaliações são conduzidas por um órgão independente. “Isso vai gerar conflitos de interesses”, dizem os especialistas.
Uma petição ao ministro do meio ambiente, José Sarney Filho, foi rapidamente organizada, e teve o apoio de mais de 6.500 signatários. O documento fazia três críticas à privatização proposta, observando que 41 por cento do trabalho realizado pela empresa privada que vencesse a licitação já está sendo feito por organizações existentes, principalmente o INPE; que contratar uma nova empresa, com um sistema diferente, dificultaria muito a comparação de dados históricos, e que o prazo de oito dias para elaborar a licitação foi totalmente inadequado.
O Ministério do Meio Ambiente respondeu às críticas. Marcelo Cruz, o secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente, disse ao Estado de S. Paulo que o objetivo do ministério é ampliar o fornecimento de dados de forma que eles possam criar o que ele chamou de “um centro de governança”. O objetivo, segundo ele, não era substituir o programa de monitoramento via satélite PRODES conduzido pelo INPE, mas fornecer informações em tempo real para dar suporte ao trabalho.
Os protestos contra a privatização continuaram a ganhar impulso, até que o ministério sentiu não ter opções a não ser dar um passo atrás e reconsiderar a proposta, decidindo, em 4 de maio cancelar a licitação a fim de ajustar os termos de referência. O ministério declarou que abrirá um novo edital no futuro próximo. Nenhuma ação foi tomada desde então.
Ninguém sabe se um novo edital será ou não aberto de fato. O Mongabay tentou entrar em contato com o Ministério do Meio Ambiente para descobrir, mas nenhuma entrevista foi concedida.
Apesar de seu cancelamento por ora, a proposta de privatização deixou muitos especialistas na área preocupados. Em declarações extraoficiais, pesquisadores disseram ao site Direto da Ciência que as exigências técnicas feitas pelo Ministério do Meio Ambiente eram tão complexas e os prazos tão curtos que praticamente nenhum instituto brasileiro seria capaz de competir. Eles receiam que um dos resultados – e, de fato, talvez, um dos objetivos – era permitir que uma empresa estrangeira assumisse o controle.
Ricardo Folhes, especialista em monitoramento remoto, disse ao Mongabay que ele acredita que o ministério propôs a mudança por razões políticas: “Está muito claro; o ministério quer autonomia para administrar os dados da devastação”. Mas, ele alertou, ao tomar a medida anunciada, o ministério arriscou destruir um dos sistemas de monitoramento mais consistentes do setor e enfraquecer o INPE, uma das instituições de pesquisa mais sólidas do Brasil.
Folhes concorda, extraoficialmente, que a bancada ruralista, o poderoso lobby do agronegócio do país, está por trás da iniciativa, mas ele está confiante de que isso não vai dar certo: “O governo não tem legitimidade para desmantelar um serviço público de qualidade, como o que vem sendo conduzido pelo INPE, e dá-lo de bandeja aos ruralistas, que sabem bem o que querem fazer com isso”.
Não há dúvidas de que, subjacente ao debate da privatização, encontra-se uma profunda preocupação com o aumento alarmante do desmatamento da Amazônia em curso hoje. As taxas caíram principalmente no período entre 2005 e 2012, mas aumentaram acentuadamente ao longo dos últimos dois anos. O salto de 29 por cento, em 2016, para quase 8.000 quilômetros quadrados, fez do objetivo do país – assumido em Paris – de reduzir o desmatamento para 3.900 quilômetros quadrados um objetivo difícil de ser atingido.
Uma das principais razões para o aumento, argumenta Marcelo Cruz do Ministério do Meio Ambiente, é a falta de dados fornecidos em tempo real, que, conforme ele diz, serão fornecidos pela nova contratação privada. Mas, de acordo com Ricardo Folhes, as coisas são bem diferentes: “O aumento do desmatamento que estamos vendo hoje não é resultado de problemas de monitoramento, mas sim de um conjunto de medidas privadas e políticas reacionárias, predatórias e etnocidas”.
O orçamento cedido ao IBAMA, um órgão do governo, para monitorar o desmatamento, foi cortado quase pela metade entre 2013 e 2015, reduzido de R$ 121 milhões para R$ 65 milhões, tornando quase impossível para o órgão apreender e multar os responsáveis pelo desmatamento ilegal detectados pela captura de imagens via satélite do INPE.
Assim como outros consultados para a elaboração deste artigo, Folhes acredita que o investimento considerável que o Ministério do Meio Ambiente está preparado para fazer na privatização seria muito melhor empregado para reverter o enorme corte no orçamento do IBAMA e melhorar o atual programa de monitoramento remoto.