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Guerra por recursos: garimpeiros brasileiros se voltam contra povos indígenas

  • A violência na Amazônia brasileira está aumentando. No ano passado, o Brasil foi considerado o país mais perigoso do mundo para ambientalistas. Povos indígenas estão especialmente sob risco, com 137 mortes registradas em 2015.

  • Uma das causas da violência é o conflito entre indígenas e garimpeiros, especialmente de ouro, que reclamam direito sobre as mesmas terras.

  • A falta de ação governamental para demarcar terras indígenas, juntamente com a falta de fiscalização federal na Amazônia, aumentam o problema.

  • Existe a preocupação com a possibilidade de que a violência aumente caso o governo federal não intervenha para conciliar as reivindicações dos grupos indígenas e as dos garimpeiros. No entanto, alguns grupos indígenas veem os pequenos mineradores como possíveis aliados diante da instalação de grandes mineradoras na região, bem como da crescente industrialização da bacia do rio Tapajós.

A small-scale gold mining operation. Miners in the Tapajós Basin have entered increasingly into conflicts with indigenous groups due to conflicting land claims. The Indians claim they have been on the land for centuries, while the miners claim the land is empty when they stake claim to it. Photo by Rhett A. Butler
Um garimpo. Os garimpeiros da bacia do Tapajós vêm cada vez mais entrando em conflito com grupos indígenas por reivindicarem as mesmas terras. Os índios afirmam que já estão nessas terras há séculos, enquanto os mineradores alegam que elas estão desabitadas quando as reclamam. Foto: Rhett A. Butler

No imaginário popular, a Amazônia muitas vezes é vista como um lugar selvagem e pouco habitado. Mas os maiores perigos da região não são onças e piranhas, e sim a falta o vazio da lei e o conflito humano que lhe vêm legando a reputação de lugar de brutal violência – frequentemente resultado de extração agressiva de recursos naturais em terras há muito reivindicadas por povos indígenas.

No ano passado, o Brasil foi considerado o país mais perigoso do mundo para ambientalistas, com 50 ativistas mortos, de acordo com a Global Witness. Mas os ativistas não são o único alvo: oficiais do governo também estão em risco. Em outubro, o secretário do Meio Ambiente, Luiz Alberto Araújo, foi assassinado com nove tiros na cabeça e no peito, na frente da família.

Para os indígenas, os perigos são ainda maiores, com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) registrando 137 assassinatos em 2015. Na região de Itaituba – uma cidade no rio Tapajós que existe em grande parte para sustentar a indústria mineradora -, essa tensão aparece regularmente nas relações entre indígenas e garimpeiros locais.

A gold miners´ cooperative in Itaituba, one of many businesses and organizations in the city dedicated to gold mining. The coop´s sign reads: “for the benefit of prospectors.” The region’s businesses often don’t want to give receipts to miners who use gold to purchase goods. As a result, no tax is paid on the sale, the miner doesn’t establish a work history with the federal government, and can’t receive social security benefits in later years. As a result, older miners who should be retired are competing with younger miners, which increases small-scale mining pressure on indigenous lands. Photo by Zoe Sullivan for Mongabay
Uma cooperativa de garimpeiros em Itaituba – uma das muitas organizações e empreendimentos dedicados à mineração de ouro na cidade. Os comerciantes locais geralmente não fornecem recibo aos garimpeiros que pagam com ouro. Dessa forma, não se paga imposto na transação; o garimpeiro não estabelece histórico de trabalho com o governo federal e, assim, não consegue receber benefícios de seguridade social no futuro. Como resultado, garimpeiros mais velhos, que deveriam estar aposentados, continuam competindo com os mais jovens, o que aumenta a pressão do garimpo sobre terras indígenas. Foto: Zoe Sullivan para a Mongabay

Reivindicação de terras pelos indígenas versus ouro

Leo Rezende é piloto de avião e trabalhou com os garimpeiros da região de Itaituba por mais de duas décadas. Ele também é o presidente da Assoicação dos Mineradores de Ouro do Tapajós (AMOT). Sentado em seu escritório com ar condicionado, ele explica por que a AMOT está contestando o processo de demarcação de terras promovido pelo governo para uma reserva indígena nas proximidades:

“A AMOT se opõe à criação de novas reservas, incluindo a que está sendo criada na região do Jamanxin (um afluente do rio Tapajós), porque ela vai afetar muitos sítios de mineração”, diz. “Essa nova reserva vai cobrir quase 180.000 quilômetros quadrados. Do nosso ponto de vista, não faz sentido, porque essa é uma área onde não havia índios”.

Rezende e outros mineradores argumentam que ONGs internacionais – incluindo o Greenpeace, que tem presença ativa na bacia do Tapajós – vêm “plantando” indígenas em “florestas desabitadas” na Amazônia a fim de justificar a demarcação das terras.

Juarez Saw, um cacique indígena local, nega enfaticamente tais acusações, afirmando: “Vimos usado o Tapajós por milhares de anos. Essas pessoas dizem isso porque são contra a demarcação”.

Em declarção, o Greenpeace corroborou esse ponto de vista: “Falar de ‘plantar indígenas’ é absurdo e falso, visto que o médio Tapajós vem sendo historicamente ocupado pelos Munduruku, e que a Terra Indígena Sawré Muybu requereu reconhecimento oficial à Funai há pelo menos quinze anos”. A declaração também cita um recente relatório da Funai definindo a área Sawré Muybu como terra tradicional Munduruku.

Small-scale gold mining in the Amazon. In addition to the land conflicts that exist between miners and indigenous groups, small-scale miners use mercury to process gold ore. As a result, Indians who eat mercury-contaminated fish can be sickened. Photo by Rhett A. Butler
Atividade garimpeira na Amazônia. Além dos conflitos por terras entre mineradores e indígenas, os garimpeiros também usam mercúrio para extrair o ouro. Com isso, os índios que se alimentam de peixes contaminados por mercúrio podem adoecer. Foto: Rhett A. Butler

Grupos indígenas dizem que, embora venham trabalhando por anos com o governo federal para obter identificação e demarcação oficial das terras tradicionais que reivindicam, interesses políticos e econômicos vêm obstruindo o caminho há tempos. A razão para a demora no caso das terras Sawré Muybu, por exemplo, foi “a prioridade concedida pelo governo à usina São Luiz de Tapajós”, segundo Maria Augusta Assirati, ex-presidente da Funai, em declaração publicada em 2015 pela Agência Pública.

A Agência Pública relatou que a demarcação da terra Sawré Muybu não foi confirmada e publicada como requerido porque o reservatório da usina teria inundado parte do território Munduruku, o que é ilegal pela lei brasileira. Contínuos atrasos do governo levaram os Munduruku a organizar seu próprio processo de demarcação para a comunidade Sawré Muybu. O território recebeu aprovação federal em 9 de abril de 2016, no Dia do Índio. A AMOT apresentou queixa administrativa à Funai, contestando a demarcação.

Tensão crescente, falta de fiscalização

Com os garimpeiros se enfurecendo com o processo de demarcação do governo, os povos indígenas temem o aumento da violência. O cacique Munduruku Juarez Saw, dos Sawré Muybu, afirmou à Mongabay que sua comunidade de 127 pessoas se sente seriamente ameaçada.

Ele chegou a pedir à Polícia Federal proteção para sua comunidade. No entanto, segundo Saw, a solicitação deu em nada – a polícia respondeu que não pode assegurar a segurança de seus próprios agentes na região. A Mongabay pediu à Polícia Federal para confirmar a declaração, mas não obteve resposta.

“Quando começamos a colocar nossas placas tradicionais de demarcação, [os garimpeiros] as amassaram e atiraram nelas. Eles usaram… armamento pesado”, diz o cacique Juarez. Ele afirma temer também por sua segurança pessoal. “Fico preocupado porque estou na linha de frente disso tudo. Então sou um alvo. Por isso, não quero mais entrar com recursos no Ministério Público. Estou na mira dos madeireiros ilegais; eles começaram a me ameaçar. Agora começam a vir esses garimpeiros. Por isso, não quero mais me envolver com isso.”

Homes in the indigenous Praia do Indio (Indian´s Beach) community on the edge of Itaituba. Indigenous people feel increasing pressure from small-scale miners, large scale mining companies, and the industrialization of the Tapajós Basin. Photo by Zoe Sullivan for Mongabay
Casas na comunidade indígena Praia do Índio, nos limites de Itaituba. Povos indígenas sofrem pressão crescente de garimpeiros, de grandes mineradoras e da industrialização da bacia do Tapajós. Foto: Zoe Sullivan para a Mongabay

Um artigo de outubro no jornal Folha de São Paulo atribuiu o crescente conflito no processo de demarcação a cortes de gastos que teriam reduzido equipes de agências governamentais como a Funai e o IBAMA. O estado do Pará se estende por 20,7 milhões de hectares. Ele também abriga 60 áreas indígenas registradas na Funai. Com menos funcionários para monitorar e fiscalizar a região, é mais difícil coibir as atividades ilegais. “Aqui é o mundo da ilegalidade”, disse à Folha uma freira franciscana, descrevendo a falta de fiscalização que recai sobre a Amazônia.

Em alguns casos, no entanto, atividades de fiscalização são vistas como exageradas e como fator de aumento na tensão. O presidente do Movimento em Defesa da Legalização da Garimpagem Regional no oeste do Pará, Luiz Rodrigues da Silva, contou à Mongabay como agentes do IBAMA recentemente queimaram um caminhão pertencente a madeireiros ilegais, gerando grande animosidade.

O IBAMA respondeu ao questionamento da Mongabay sobre a queima do caminhão afirmando que todos os seus métodos são legais. Um e-mail da agência diz: “A destruição de equipamento e maquinário é necessária porque, em geral, sítios de mineração e extração de madeira ilegais em áreas indígenas ficam em locais de difícil acesso, inviabillizando a logística para remover [o equipamento]”.

Luís Rodrigues da Silva, President of the Movement in Defense of Regional Prospecting in Western Pará, sits in his office in Itaituba. Photo by Zoe Sullivan for Mongabay
Luiz Rodrigues da Silva, presidente do Movimento em Defesa da Legalização da Garimpagem Regional no oeste do Pará, em seu escritório em Itaituba. Foto: Zoe Sullivan para a Mongabay

Prevendo uma guerra civil

Luiz Rodrigues da Silva é conhecido como Luís Barbudo, e tem a aparência de um rude garimpeiro da Amazônia. Traz no pescoço uma grossa corrente com uma rebuscada cruz dourada, repousando sobre os pelos grisalhos de seu peito em forma de barril.

“Vai haver uma guerra civil aqui no oeste do Pará”, avisa Rodrigues da Silva ao falar com a Mongabay em sua garagem/escritório em Itaituba.

Rodrigues da Silva é veemente e intransigente sobre a proteção dos direitos dos garimpeiros artesanais de ouro, que, segundo ele, estão sendo esmagados por interesses maiores. Esses interesses incluiriam os do governo e de empresas mineradoras de grande porte. “Nós aqui não podemos fazer nada porque, lá fora, há pessoas muito poderosas que podem nos massacrar. Mas o que pudermos fazer, aquilo que achamos ser nosso direito, podemos tentar [defender]”.

Rodrigues da Silva se refere ao recente episódio da queima do caminhão como um exemplo das injustiças enfrentadas por seus pares. Ele também denunciou a demarcação federal da área indígena Sawré Muybu como uma medida que invadiria território de mineração.

Muitos garimpeiros dizem que suas opções de exploração estão sendo reduzidas de um lado pelas medidas conservacionistas do governo e, por outro, pelas grandes empresas mineradoras que estão entrando na região. Enquanto isso, a falta de fiscalização federal ajuda a criar um terreno fértil para a violência.

A large-scale gold mining operation. Indigenous groups and small-scale miners who have long been at odds with each other could end up uniting over large-scale mining projects. Rhett A. Butler
Uma grande mineradora na Amazônia. Grupos indígenas e garimpeiros, que há tempos têm estado em conflito entre si, poderiam acabar se unindo contra projetos de mineração em grande escala. Foto: Rhett A. Butler

Rezende é mais comedido do que seu colega Barbudo, mas concorda em que o governo precisa fazer valer a lei, ainda que repudie alguns de seus métodos, como o da queima de maquinário. Os dois líderes garimpeiros argumentam com veemência que as áreas de proteção federal se sobrepõem a terras sobre as quais os mineradores tradicionalmente têm autorização para explorar.

Minerador contra minerador contra o governo

Rezende aponta ainda outra fonte de conflito, admitindo que os mineradores têm se tornado mais numerosos na Amazônia, e agora estão invadindo o território uns dos outros, algo que ele considera um “sério problema”.

“Isso não existia aqui no Tapajós”, diz Rezende. “Poucos anos atrás, havia um tipo de código entre os garimpeiros; nós respeitávamos o território uns dos outros. Nos anos 2000, alguns [novos] madeireiros começaram a chegar à região. Mesmo que se defenda que isso é importante para a economia regional e nacional, alguns deles tinham práticas pouco saudáveis e começaram a entrar em áreas [de mineração de ouro], o que criou uma [nova] forma de cultura”.

Se antes existia um código de honra que fazia os mineradores respeitarem as reivindicações uns dos outros, isso deixou de ser uma prática padrão, gerando tensão na comunidade garimpeira.

Luís Silva de Sousa, também conhecido como Luís Preto, é um dos que sofreram o impacto dessa “mudança cultural”. Ele vem atuando no garimpo na região de Itaituba desde 1974. Sentado à sombra de uma enorme árvore na frente de sua casa de três andares, sua silhueta esguia o faz parecer ter muito menos do que seus 72 anos.

Luís Silva de Sousa, known as “Luís Preto”, sits beneath a shade tree in his front yard. He has been mining for gold in the area around Itaituba, Pará since 1974. Photo by Zoe Sullivan for Mongabay
Luís Silva de Sousa, conhecido como Luís Preto, sentado sob a sombra de uma árvore em seu quintal. Ele garimpa ouro na região de Itaituba, Pará, desde 1974. Foto: Zoe Sullivan para a Mongabay.

Além de enfrentar a invasão de outros mineradores a seu território, Silva de Sousa aponta que, na economia local, é comum driblar regulamentações federais e impostos, o que traz efeitos lamentáveis para os garimpeiros e, por tabela, para as reivindicações dos povos indígenas.

“[H]á pouca fiscalização do governo na nossa região”, disse Silva de Sousa à Mongabay. “A maioria de nós, que trabalhamos no [negócio] da garimpagem, sofre com a nota, quer dizer, a nota fiscal, o recibo pela compra de ouro e mercadoria”. A nota fiscal é parte oficial da contabilidade das empresas, identificando os impostos a pagar. Mas os garimpeiros encontram um grande problema no fato de o comércio não querer emitir recibo para o ouro bruto que eles vendem, geralmente em troca de mercadoria.

Segundo Silva de Sousa, grande parte da atividade comercial relacionada ao ouro não é registrada, o que compromete a capacidade dos mineradores de provar seu histórico de trabalho perante o governo e, futuramente, a possibilidade de eles requererem aposentadoria. Com isso, mineradores mais velhos são obrigados a continuar garimpando, aumentando a pressão sobre os recursos da região e sobre as terras indígenas. Além disso, essas operações não geram contribuição aos cofres públicos, dinheiro que poderia ser usado para custear policiamento e fiscalização.

Silva de Sousa diz que, hoje, não dispõe de qualquer benefício social para se manter, sendo um entre os muitos garimpeiros mais velhos que enfrentam esse desafio: “Ainda estou trabalhando. Não consegui fazer um pé-de-meia e não tenho aposentadoria”.

Apesar da tensão entre indígenas e garimpeiros, o cacique Munduruku Juarez ainda vê os pequenos mineradores não como inimigos, mas como potenciais aliados em uma luta maior. Embora tenham ameaçado Juarez, garimpeiros como Silva de Sousa trazem esperança aos povos indígenas na batalha contra grandes empresas mineradoras e a crescente industrialização da bacia do rio Tapajós.

“No meu pensar, não é hora de guerra”, disse Silva de Sousa à Mongabay. “É hora de sentar com as lideranças políticas, líderes administrativos, conselhos fiscais, partidos, empresários, sindicatos e comunidades e formar um comitê para ir a Brasília”, comitê esse com o objetivo de buscar uma solução pacífica para os intensos conflitos de terra na Amazônia.

An early morning view of the grain silos on the eastern bank of the Tapajós River, directly across from the city of Itaituba. These silos at a newly built river port are an indicator of the rapid industrialization of the region, as road, rail and waterway infrastructure is built to support the export of soy and other commodities from Mato Grosso state. Small-scale gold miners and indigenous people are worried about this large-scale infrastructure development, and could end up becoming uneasy allies because of it. Photo by Zoe Sullivan for Mongabay.
Vista matinal de um silo de grãos na margem leste do rio Tapajós, bem em frente à cidade de Itaituba. Esses silos, em um recém-construído porto, são um indicador da rápida industrialização da região, com a construção de estradas, ferrovias e vias fluviais para viabilizar a exportação de soja e outros produtos do Mato Grosso do Sul. Garimpeiros e povos indígenas estão preocupados com esse desenvolvimento de infraestrutura em grande escala, e, por isso, podem acabar se tornando aliados, ainda que apreensivos. Foto: Zoe Sullivan para a Mongabay.
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