O governo brasileiro planeja construir sete usinas hidrelétricas no rio Tapajós e seus afluentes – uma parte da Amazônia conhecida por sua excepcional biodiversidade terrestre e aquática. A usina de São Luís do Tapajós é a maior e a primeira a ser proposta.
Um relatório de impacto ambiental autorizado pela Eletrobrás em conjunto com algumas empresas que pretendem construir a usina de São Luiz do Tapajós diz que o projeto causará rapidamente o desaparecimento de habitats, perda de fauna e redução de suas populações. Ainda assim, o relatório conclui que a usina causará pouco impacto ambiental.
Em uma análise independente deste relatório feita pelo Greenpeace, cientistas criticaram a metodologia e os resultados do documento, apontando que este não identificou ou identificou de forma equivocada os impactos sobre o meio ambiente.
Os especialistas afirmam que, por se saber tão pouco da ecologia aquática do Tapajós, há uma demanda urgente por mais estudos antes da construção das usinas. O projeto da hidrelétrica poderia colocar em risco espécies de peixes comerciais, comunidades do boto cor-de-rosa, ariranhas e jacarés-açus. Teme-se que o reservatório concentrará altos níveis de mercúrio, intoxicando os peixes e as pessoas.

Contaminação por mercúrio, matança de peixes, extinção de espécies aquáticas conhecidas (além de outras tantas ainda não conhecidas pela ciência), além da ruína física e econômica das comunidades indígenas e ribeirinhas tradicionais. Segundo especialistas críticos ao projeto, essas são algumas das razões para se evitar a construção de um conjunto de hidrelétricas na bacia do rio Tapajós, no coração da Amazônia brasileira.
O governo brasileiro espera construir sete usinas hidrelétricas no Rio Tapajós e seus afluentes em uma região do estado do Pará conhecida por sua excepcional biodiversidade terrestre e aquática. A maior delas, e a primeira a ser proposta, é a usina de São Luiz do Tapajós, que vai consumir R$ 30 bilhões e remover pelo menos 2,5 mil pessoas de comunidades tradicionais e aldeias indígenas, além de alterar o meio ambiente e a economia local de toda a região.
Para conhecer a vida do rio e dos pescadores que estão na rota das usinas, Mongabay enviou uma jornalista e fotógrafa da agência de notícias Repórter Brasil para navegar por 280 quilômetros do Tapajós durante dez dias.
Descendo o rio
No barco coalhado de redes que segue lentamente de Itaituba a Santarém, Raimundo Nonato Firmino encara o Tapajós até cochilar sobre o parapeito. Tem a magreza, as manchas, rugas e cicatrizes profundas de pescador.
Raimundo é pescador em Barreiras desde jovem. É o que sabe fazer. Tem 72 anos, oito filhos e aguarda a chegada do décimo quarto neto. Ele nos conta que viver disso no Tapajós nem sempre foi fácil e sua habilidade nem sempre foi o suficiente. Raimundo nos lembra de como ele teve de sair de uma onda de azar quando ficou 84 dias sem pegar um peixe sequer.

Ainda que capaz de resistir a essas adversidades, hoje ele se mostra frágil ao descrever o que teme quanto ao impacto das usinas no Tapajós. “Rapaz, não sei nem explicar o que eu sinto. Na minha mente, não era para acontecer isso. Vai prejudicar a gente aqui porque o rio vai baixar. Vai prejudicar as tartarugas, a desova dos peixes, que vão diminuir. Deus é quem sabe se eu vou viver para ver. Mas meus filhos e meus netos vão e eu acho isso muito triste”, lamenta.
Dos rios mais extensos do Brasil, o Tapajós percorre 800 quilômetros desde o norte do Mato Grosso até chegar à cidade paraense de Santarém, onde deságua no rio Amazonas.
No percurso, o rio forma ilhas, praias e lagoas, que se modificam de acordo com as chuvas. O rio alimenta também igarapés, cursos de água típicos da Amazônia que são ricos em vegetação e onde vivem certos peixes e jacarés.

E cria as florestas de igapós, região repleta de árvores com raízes submersas onde ocorre a desova de peixes e onde vivem anfíbios típicos da região.
Relatório de Impacto Ambiental falho?
A conclusão de que as novas usinas possivelmente trarão um fim a toda essa riqueza consta de um estudo de impacto ambiental (EIS) encomendado pela Eletrobrás, órgão federal de energia, em conjunto com o Grupo de Estudos Tapajós, que abarca empresas que têm a expectativa de construir e lucrar com os projetos de hidrelétricas.

O estudo descreve os impactos repentinos do megaprojeto no ambiente amazônico da seguinte forma: haverá “um desaparecimento rápido [de habitats] com consequências repentinas para a fauna local, o que pode ocasionar perda de animais e diminuição de suas populações”.
Apesar dessa declaração sombria, o estudo conclui que não haverá impactos ambientais significativos em termos gerais e que o projeto deve continuar.
Tal conclusão foi alvo de severas críticas de ambientalistas, ONGs e cientistas, para os quais as descobertas minimizam e ocultam a verdadeira dimensão da catástrofe ambiental em decorrência das usinas do Tapajós.
O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), órgão ambiental responsável pelo licenciamento de projetos para a construção de hidrelétricas, ainda não aprovou os relatórios feitos pelo Grupo de Estudos Tapajós. O consórcio é liderado pela Eletrobrás e integrado pelas empresas que têm interesse na obra: Eletronorte, Camargo Correa, Copel, Endesa Brasil, Cemig, Neoeergia, além das francesas EDF e GDF Suez. Todas essas companhias têm fortes motivações financeiras para consumar a construção das usinas.
Em análise crítica ao relatório de impacto ambiental da Eletrobrás, especialistas convocados pelo Greenpeace criticaram a metodologia e os resultados do documento elaborado pelas empresas.

A Eletrobrás não quis comentar o relatório da organização, mas ele gerou reação do Ibama. Representantes do Ibama reuniram-se no começo de março de 2016 com quatro especialistas responsáveis pelo relatório e começaram a analisar o texto da ONG para apresentar questionamentos à Eletrobrás. Porém, o Grupo de Estudos Tapajós não se manifestou até o momento.
Erros quanto às espécies aquáticas?
De acordo com os especialistas, erros na identificação de espécies comprometem o estudo das empresas interessadas no leilão. Há espécies identificadas duplamente e outras que não são citadas. Segundo o Greenpeace, houve erro na identificação e falta de informações sobre peixes mais conhecidos do rio, como curimatã (Prochilodus sp.) e pirarucu (Arapaima sp.) – peixes importantes para o sustento de grupos indígenas, grupos tradicionais, cidades locais e vilarejos.
“Estas fragilidades geram dúvidas a respeito da qualidade das informações taxonômicas (de classificação dos seres vivos) e biológicas obtidas, que podem ter sido originadas a partir de identificações errôneas e mistura de espécies”, conclui o relatório.

Para o pesquisador Jansen Zuanon, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), responsável pela análise crítica do relatório sobre a vida aquática, houve pouco esforço na coleta manual de peixes do Tapajós, sobretudo nas sessões de mergulho na região dos pedrais, justamente onde será instalado o reservatório da usina.
Esse local em particular é ideal para a geração de eletricidade porque é um lugar onde o rio desce rapidamente, formando um conjunto de formações rochosas e corredeiras habitadas por espécies aquáticas únicas em grande medida não detectadas nas sessões de mergulho conduzidas pelo Grupo de Estudos Tapajós.
São precisamente essas espécies aquáticas que poderão sofrer os maiores impactos causados pela usina, que transformará esses trechos fluviais em vastas extensões de água parada. De acordo com Zuanon, essa grave ausência de dados, por si só, compromete a validade do estudo em questão.
Segundo o geógrafo Rodrigo Herles, assessor técnico da Diretoria de Licenciamento do Ibama, entre os pontos questionados estão a falta de estudos sobre o impacto ambiental nas regiões acima e abaixo do reservatório da hidrelétrica e sobre o impacto social e econômico sobre a pesca ornamental (peixes de aquário) e artesanal (peixes para consumo das comunidades tradicionais).

O maior temor dos pescadores de Barreiras é o de que a usina de São Luiz do Tapajós cause a extinção do piau (leporinus elongatus), um dos peixes-símbolo da comunidade e uma espécie comercial valiosa, segundo Edson Carlos Porto, que abandonou os estudos no quarto ano escolar para ajudar seu pai no barco de pesca da família.
“O piau desova na ilha de igapó (vegetação aquática típica da Amazônia), que não vai mais encher por causa da barragem. O período de pesca dele é de abril a julho e, nos dois primeiros meses, dá para pescar até 15 quilos por dia só dele, que a gente vende a R$ 11 o quilo. Mas a gente também não sabe o que vai acontecer com o pirarucu, tambaqui, curimatã, pacu, mapará, branquinho, que se pesca por aqui. Vai ver vou ter de ir embora”, fala Edson.
O que não sabemos…
As inúmeras questões feitas por especialistas levantam uma pergunta importante ainda sem resposta: o quanto ainda há para se descobrir sobre os impactos ambientais causados pelas usinas e, especialmente, os habitats dessas áreas rio acima e rio abaixo?

A construção da usina de São Luiz do Tapajós inundará florestas e cidades fluviais, prejudicando pescadores e o ritmo diário de comunidades indígenas tradicionais. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil.
Berço de rica biodiversidade, com frequência espécies novas são achadas na região. Em novembro do ano passado, uma expedição com pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará descobriu novas espécies no igarapé Açu, que fica na Floresta Nacional do Tapajós (Flona). A região fica no local onde será construído o reservatório da usina.
O novo peixe é um tipo de “piaba”, semelhante ao encontrado em outros rios do país, mas com coloração, anatomia e porte diferentes. A descoberta foi feita pelo biólogo Cárlison Silva de Oliveira, que encontrou 117 espécies de peixes em apenas 22 igarapés.
Pesquisadores dizem que há uma demanda urgente por mais estudos antes que as construções se iniciem. Para evidenciar essa necessidade, eles apontam para as divergências no número de espécies reconhecidas da região. Segundo estudo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Tapajós conta com 494 espécies de peixes. Já segundo o estudo de feito pelo grupo interessado em construir a obra, a região conta com apenas 352 espécies – uma discrepância de cerca de 30% e uma diferença de 142 espécies.
Ainda assim, ninguém nega que a usina causará um grande impacto na população dos peixes. Até os estudos de impacto oficiais, feito pela Eletrobrás e outras empresas interessadas na obra, admite que as áreas de contenção da barragem, as chamadas de “ensecadeiras”, desviarão trechos do rio, causando a morte de peixes. Ao reduzir o volume de água nos pedrais de São Luiz, ambiente ideal para reprodução de diversas espécies, e ao criar um paredão que serve de obstáculo para o deslocamento dos animais, a obra coloca em risco a sobrevivência de peixes, botos cor-de-rosa, ariranhas e jacarés-açus. O estudo de impacto oficial também revela a perda de lagoas permanentes e as que se formam apenas em algumas épocas do ano.

Enquanto isso, o reservatório inundará habitats terrestres incomuns onde espécies únicas lutam pela sobrevivência, incluindo ravinas, penhascos, praias e ilhas de rio. O impacto se estende por 38 mil hectares (380 quilômetros quadrados). Desse total, metade da área terá de ser desmatada, perdendo floresta nativa e formações de água muito específicas da região, que são responsáveis pela sobrevivência de espécies que só existem ali – algumas talvez ainda desconhecidas pela ciência.
Populações e conhecimentos locais ignorados
Uma das principais críticas ao estudo de impacto ambiental é que ele foi focado sobretudo na região que será alagada, que compreende as comunidades de Pimental, Montanha Mangabal (que terá uma parte submersa) e aldeias indígenas Munduruku.
As áreas abaixo e acima da barragem não foram devidamente estudadas. Essa falha é apontada pelas comunidades tradicionais, prefeituras dos municípios envolvidos, como Santarém e Itaituba, ONGs e pelo Ministério Público Federal do Pará.
As falhas nos estudos de impacto poderiam ser menores se o processo tivesse incluído as populações locais, maiores conhecedores das espécies locais e da dinâmica do rio.

A ausência de uma Consulta às comunidades tradicionais foi alvo de ação do Ministério Público Federal de Santarém. O órgão denuncia que o empreendimento é obrigado a ouvir as comunidades locais de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, do qual o Brasil é signatário. Essa Convenção afirma que povos indígenas e comunidades tradicionais potencialmente impactados têm o direito de ser consultados antes da autorização para a construção da usina.
Ao descer o rio Tapajós, de Itaituba a Santarém, o que mais se vê nas colônias de pescadores é o temor com o futuro, sob o risco da construção da hidrelétrica. Em Pimental, vila de pescadores que será completamente alagada, os cerca de 700 moradores não sabem para onde vão depois de serem removidos, nem como serão indenizados.
Em busca de peixes ornamentais, como a “borboleta” e os “acarás”, Risonildo Lobo dos Santos, o Seu Miga, usa o puçá, uma rede pequena de nylon fino, e retira os peixinhos delicadamente com as mãos para não machucá-los. Encontra os cardumes na beira do rio ou nos igarapés.
Da Associação de Moradores e Pescadores de Pimental, seu Miga é um dos nomes mais respeitados da comunidade e um dos poucos pescadores ornamentais.
A maioria pesca “peixes grandes”, que são vendidos logo pela manhã, transportados em pequenas motocicletas para as cidades vizinhas. As vendas têm de ser rápidas porque as comunidades são simples, não contam com frigoríficos nem esquemas profissionais de distribuição de peixes.
Peixes contaminados?
Uma das denúncias mais graves, entre as que pesam sobre a os impactos ignorados pelos estudos oficiais, é a contaminação por mercúrio.
A hidrelétrica será um agravante nesse processo de contaminação por mercúrio, que comprovadamente causa danos cerebrais e fetais. Munido de pesquisas e documentos internacionais, o ex-superintendente regional de saúde e neurocirurgião Erik Jennings fez a denúncia durante audiência pública promovida pelo Ministério Público do Pará.

Duas comunidades pesqueiras já são monitoradas desde os anos 90 por pesquisadores e autoridades sanitárias devido à contaminação de mercúrio causada pelo solo amazônico, pelo despejo do metal proveniente do garimpo e pelo desmatamento. Moradores de Barreiras (que fica rio abaixo de onde será o reservatório) e São Luiz do Tapajós (três quilômetros acima) passam por exames periódicos de medição do metal desde os anos 90.
A recomendação é para que as pessoas consumam menos peixe, explica a técnica de enfermagem Vaneide Amorim dos Santos, que trabalha no posto médico de São Luiz, onde há cartazes pedindo aos pescadores que comam menos peixe. O excesso de mercúrio afeta sistema nervoso e causa danos fetais.
Vaneide admite, no entanto, que é difícil modificar a dieta dos moradores. Um quilo de carne custa de15 a 20 reais, enquanto o pescador vende o quilo de seu pescado por muito menos. A reportagem chegou a comprar um quilo de mapará por R$ 3. Cinco quilos de mapará valem um quilo de carne. Para o pescador, o mapará se pesca em minutos, de graça, na porta de casa.
“O Núcleo de Medicina Tropical estuda o nível de mercúrio no cabelo das pessoas de Barreiras e São Luiz e há um grupo que estuda os impactos neurológicos”, explica Jennings. Essas duas comunidades têm mostrado nível alto de metilmercúrio nas amostras de cabelo, mas não manifestaram sintomas graves.
No entanto, sinais clínicos não se manifestam por muitos anos. Em um grave caso de intoxicação de metilmercúrio no Japão, os sinais foram reconhecidos apenas após 24 anos. Alguns moradores apresentam perda de sensibilidade tátil e nos lábios, de acordo com Jennings.


Ainda segundo o neurocirurgião, esses sintomas vão se intensificar com a construção da usina. Jennings explica que o mercúrio não vem exclusivamente da mineração de ouro. Está presente naturalmente em muitos solos, inclusive o amazônico, em uma forma inorgânica inofensiva. No entanto, bactérias anaeróbicas que se alimentam de matéria orgânica em decomposição no fundo de um novo reservatório podem transformar esse mercúrio inorgânico em metilmercúrio, uma grave toxina que afeta o sistema nervoso central. No reservatório, o metilmercúrio, por sua vez, pode ser absorvido por algas e percorrer a cadeia alimentar, dos peixes pequenos aos maiores que os devoram. A cada etapa, a toxina se torna mais concentrada e perigosa em um processo conhecido como bioacumulação.
É óbvio que, na sequência, os pescadores e os consumidores consumirão os peixes maiores.
Jennings teme que o reservatório sirva como um local perfeito para a transformação do mercúrio inorgânico em metilmercúrio tóxico. A turbina da hidrelétrica funciona como um distribuidor dessa substância, jogando a água contaminada (pelo metilmercúrio já existente e pelo criado com o reservatório) na região abaixo do reservatório. “Em Tucuruí, o nível mercurial a jusante é maior que o do reservatório”, conta o médico.
Jennings diz que estudos passados não encontraram qualquer risco de contaminação de mercúrio nos pescadores do Tapajós e em outros residentes da região porque se levaram em consideração padrões suíços para afirmar que os ribeirinhos estão fora do risco de contaminação. Por esse padrão, conta-se um consumo semanal de 400 gramas de peixe. A realidade dos amazônicos é bem diferente. Na casa dos ribeirinhos, come-se peixe no almoço e jantar, quase de domingo a domingo, aumentando, assim, a sua exposição ao mercúrio.
O debate em torno dos impactos ambientais e socioeconômicos causados pelas usinas da Bacia do Tapajós está longe de se esgotar, assim como o futuro da usina de São Luiz do Tapajós está longe de ser traçado. Por ora, o processo de licenciamento da usina está parado por decisão do Ibama tomada um pouco antes do afastamento de Dilma Rousseff da presidência para se submeter ao processo de impeachment no primeiro semestre. O governo Temer ainda não manifestou seu posicionamento sobre o projeto da hidrelétrica. Até que essa decisão seja tomada, as vidas dos ribeirinhos e da fauna da Bacia do Tapajós se mantêm por um fio.


Tradução complementar pela Universidade Católica de Santos. O artigo em sua versão original, escrita em português por Tatiana Farah, foi primeiramente publicado pela ONG ‘Repórter Brasil’