O consórcio Norte Energia – o grupo de empresas que construiu a usina de Belo Monte – assinou um acordo com o governo brasileiro em 2011, em que se comprometiam a pagar 1 bilhão de dólares aos moradores de Altamira, incluindo povos indígenas, em compensaçãopelos impactos causados pela obra. Mas pescadores tradicionais reclamam de não ter sido adequadamente compensados.
Os pescadores dizem que a represa afetou negativamente a qualidade da água e a reprodução dos peixes no rio Xingu, além de reduzir drasticamente a área em que se pode pescar. A represa também os teria privado de mercados em que vendiam seus peixes – comunidades destruídas pela represa.
A construção de Belo Monte ainda forçou os pescadores a se mudar de vilarejos rurais para um precário reassentamento na cidade de Altamira, com poucos recursos. Eles também nãovivem mais no rio e, por isso, precisam se locomover até o curso d’água para poder pescar.
Protestos de pescadores resultaram na criação de uma nova condição para a licença de operação em Belo Monte no fim de 2015. A Norte Energia foi obrigada a iniciar um projeto de assistência técnica voltada para a melhoria das condições de pesca no rio Xingu. O IBAMA também está estudando a perda de renda, a perda de identidade e de práticas tradicionais para elaborar um plano de compensação.
“Eu pesco. Vivo da pesca desde que me entendo por gente. Pesquei a vida inteira”, diz Aureo da Silva Gomes. Ele tem 33 anos, é baixo e intenso, e sua garagem parece uma quadra de vôlei surreal por causa das redes de pesca penduradas de lado a lado, aguardando reparo.
Ele agora vive no “reassentamento urbano coletivo” de Jatobá, na cidade de Altamira, perto da quarta maior hidrelétrica do mundo, conhecida como Belo Monte.
“A situação da pesca piorou por causa dessa represa, tanto em relação à própria pesca quanto à venda do pescado”, diz ele. “A cidade acabou depois que a [empresa de construção] foi embora. Trazemos peixe, mas os preços estão baixos, e não tem ninguém pra comprar. A situação está realmente difícil”.
Histórias como as de Aureo Gomes são comuns aqui. Existem cinco reassentamentos urbanos para pessoas que, como ele, foram desalojadas de suas casas e afastadas de seu ganha-pão ao longo do rio Xingu por causa da construção da usina, que começou a operar este ano.
Em um acordo de 2011 com o governo federal, o consórcio Norte Energia – o grupo de empresas que construiu Belo Monte – concordou em pagar 1 bilhão de dólares aos moradores de Altamira em compensação pelo impacto causado pela obra, mas até agora pouco foi pago, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), uma ONG vigilante. E, ao que parece, especialmente pescadores tradicionais como Aureo foram lesados por causa de brechas no plano de compensação, embora a Norte Energia alegue estar cumprindo seus compromissos.
Não é de espantar que a situação das compensações seja confusa. O estudo de impacto ambiental (RIMA) da Norte Energia estima que 16.420 pessoas da cidade de Altamira tenham sido afetadas pela represa, além de mais outras 2.822 de áreas rurais. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), no entanto, considera que o número seja aproximadamente duas vezes maior: 40.000. O município Altamira admite não dispor de uma contagem dos moradores das comunidades de reassentamento. Mas diz que existem 4.277 novas casas, e o departamento de planejamento da cidade estima cinco pessoas por domicílio, o que resultaria em uma população de 21.385 pessoas reassentadas.
Pescadores tradicionais enfrentam tempos difíceis
O impacto de Belo Monte sobre os povos indígenas que vivem ao longo do rio Xingu foi uma das razões pelas quais a obra atraiu atenção – e crítica – internacional. Mas a área atingida era também o lar de povos tradicionais que de modo geral viviam em terras comunais e se sustentavam por meio de agricultura, pesca e caça em pequena escala. Pesquisadores descobriram que essas práticas sustentáveis tendem a manter tais áreas de floresta amazônica mais bem preservadas do que aquelas livres da coexistência humana.
O Instituto Socioambiental afirma que povos não indígenas habitam a região desde ao menos o fim do século 19, época do início do ciclo da borracha. Alguns deles teriam migrado de outras regiões do Brasil, enquanto outros, como Aureo, vêm de famílias que vivem na região há várias gerações.
Povos tradicionais, como os grupos indígenas, são protegidos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, segundo a qual projetos como o da usina de Belo Monte precisam do conhecimento e consentimento livre e prévio dessas populações para ser implantados nas regiões onde elas vivem. No entanto, essas pessoas não são especificamente protegidas pela Constituição como o são os quilombolas.
“No verão, a estação boa, eu conseguia pegar 100 quilos de peixe por semana, antes de a usina chegar. Agora não pego mais tudo isso”, lamenta Aureo Gomes, sentado em um banco em sua cozinha em Jatobá, um reassentamento urbano coletivo (RUC). Antes da construção da usina, ele tinha três casas perto do rio Xingu, em Altamira, que ele alugava para complementar a renda da pesca, sendo sua residência primária uma área ao longo do rio Vasão dos Padres.
Seus imóveis em Altamira também foram destruídos com a construção da represa, e Aureo foi realocado de Vasão dos Padres para um labiríntico bairro urbano a cerca de quatro quilômetros do rio. Lá, há poucas regalias: as ruas não têm placas, não existe transporte público, e há pouquíssimas árvores.
“Pagávamos quase nada pelo transporte, para ir e voltar [quando morávamos perto do rio]. Quando fui transferido para cá, o que aconteceu? Agora eu gasto cem reais por semana para ir, levar [minhas redes de pesca e outros equipamentos] até o rio, e voltar. Esses cem reais, eu não tinha de despesa[antes]. Agora estamos perdendo nossos barcos. Eu mesmo perdi umbarco que custava cerca de doze mil porque não tinha o dinheiro, duzentos reais, para levá-lo e trazê-lo [à cidade] toda semana. Então eu o deixei na beira do rio, e ele foi roubado”.
Além disso, há pouco trabalho para ele na Altamira urbana. Aureo diz ter algumas habilidades, que é “bom com números”, mas afirma também: “não tive muita educação, [e] mesmo que tivesse, não conseguiria emprego. Tenho sobrinhas e sobrinhos que terminaram a escola e não conseguem emprego. Eles estão lavando pratos”.
Como resultado, ele e seus colegas continuam pescando, ainda que enfrentando sérios obstáculos. A construção de Belo Monte destruiu redes sociais, quebrou laços de parentesco, amizade e trabalho: “a usina chegou e acabou com a clientela na área onde vendíamos peixe”, diz – comunidades que havia muito serviam como mercados de peixe foram destruídas para abrir caminho para o reservatório.
Ao mesmo tempo, os impactos ambientais da represa reduziram a quantidade de peixe apanhado por dia. A qualidade da água foi prejudicada, e áreas de desova, arruinadas. A mortandade de peixes tornou-se comum. Ocorreu a morte de mais de dezesseis toneladas de peixe quando a usina começou a operar, o que resultou em uma multa de R$ 8 milhões ao consórcio.
Assim, os pescadores tradicionais continuam lutando – desenraizados de seus lares e ganha-pães, transplantados de um ambiente rural ribeirinho para a desoladora Altamira.
Povos tradicionais esquecidos
Esses impactos, segundo a advogada do Instituto Socioambiental Carolina Reis, foram negligenciados desde o começo pelo governo brasileiro e pela Norte Energia. “Os pescadores, um grupo tradicional, que vivem nessa relação [íntima] com o rio, que têm um modo de vida cultural e econômico ligado ao rio, se tornaram invisíveis durante o processo de licenciamento de Belo Monte. Os impactos sobre eles, sobre a pesca, como isso se refletiria na vida das pessoas, nada disso foi identificado, medido ou qualificado, de modo que um programa de compensação pudesse ser criado para essas famílias, antes de as licenças serem expedidas”.
Para complicar a situação, diz ela, existe o fato de que o IBAMA depende de relatórios da Norte Energia para monitorar as condições de vida na região afetada por Belo Monte.
O Ministério Público Federal deve finalizar até o final do ano um estudo para determinar a extensão dos impactos sobre os pescadores tradicionais, revela Higor Pessoa, promotor do MPF dedicado a questões ambientais.
“O MPF já coletou evidências da destruição de áreas de pesca que eram tradicionalmente usadas por pescadores antes da usina de Belo Monte”, disse Higor ao Mongabay. “Por causa do projeto, [essas partes do rio] foram suprimidas [em relação ao fluxo], proibidas [para uso] ou aterradas. E, até agora, elas não foram restauradas a seu estado original”.
Tanto Higor Pessoa quanto Aureo Gomes ressaltam que o número e a variedade de peixes no rio veê caindo substancialmente desde o início do projeto da usina. Além disso, a parte do rio em que os pescadores estão autorizados a pescar foi muito reduzida, fazendo a região ficar abarrotada de gente e sofrer pesca excessiva, explica Aureo. “O espaço que nos deram, que a Belo Monte nos deu, é muito pequeno. Rio acima há áreas indígenas onde ninguém pode pescar. Rio abaixo, tem áreas indígenas e a barragem. Acho que tem trezentos a quinhentos pescadores [amontoados] nessa área”.
O excesso de gente causa conflitos. “Pessoas da região, às vezes de Vitória do Xingu, acabam até roubando peixe das áreas indígenas”, diz Aureo Gomes. “Houve casos de barcos quebrados, de pescadores presos porque [agora] tendem a arriscar ir até as áreas indígenas, onde não é permitido, mas eles vão porque precisam do peixe”. O Instituto Socioambiental relata que pescadores de outras partes do rio também entram nesses pontos de pesca, o que cria ainda outra camada de conflito..
Carolina Reis disse ao Mongabay que a resistência dos pescadores levou o governo a criar uma nova condição para a concessão de licença de operação para Belo Monte ao final de 2015. “O IBAMA obrigou a Norte Energia… a começar um projeto de assistência técnica dedicado à pesca por pelo menos três anos ao longo de toda a área que sofreu alterações [por causa da barragem], seja como resultado do [novo] reservatório ou da redução do fluxo de água [no curso principal do rio, que foi amplamente ignorado pela construção de Belo Monte]”.
Carolina espera que seja criado um sistema de compensação que não apenas reconheça a perda de renda dos pescadores tradicionais, mas também a perde de identidade e práticas tradicionais.
“O conhecimento tradicional dos pescadores do rio Xingu está intimamente ligado à paisagem”, explica ela. “Existe o risco de se perder a passagem do conhecimento desses métodos de pesca tradicionais, e de todo o valioso conhecimento não material que vem sendo passado de geração a geração – de avôs para pais e de pais para filhos – porque os pescadores estão mais longe do rio agora. E aqueles que estão no rio encontram um rio alterado e [estão enfrentando] muitas dificuldades para pescar da maneira como faziam antes”.
Alguns, como Valda Josefalda Silva da Conceição, se recusam a desistir de seus antigos lares. Ela vivia em uma ilha próxima ao povoado ribeirinho de Vasão dos Padres. “Nasci e cresci na beira do rio. Sou pescadora”, explica. Valda é robusta, de pele escura, a camiseta suja do trabalho de casa. Sua filha pequena sobe em seu colo durante a entrevista. Ela descreve o passado humilde que ela e o marido tiveram às margens do rio Xingu e fala sobre sua conexão com o ambiente local.
“Meu marido não sabe ler. Ele só sabe pescar”, diz ela.
A família inteira foi realocada por causa de Belo Monte – Valda, o marido, a filha, a sobrinha e seu bebê. Hoje, eles vivem em Jatobá, o mesmo reassentamento onde mora Aureo da Silva Gomes. Lá, ela cria galinhas e cultiva ervas e alguns vegetais na estreita faixa de terra entre sua casa e a cerca. Seus cachorros, embora pequenos, ajudam a evitar que pessoas roubem as galinhas e pertences. Ainda assim, Valda prefere não deixar a casa vazia por medo de ladrões.
A Norte Energia ofereceu a ela R$ 3.200 em compensação por sua casa na ilha, que, segundo Valda, a companhia queimou. Ela disse ao Mongabay que a empresa ofereceu também um lugar para pescar, mas ela recusou, insistindo em retornar ao seu imóvel na ilha. A Norte Energia não respondeu ao pedido do Mongabay para comentar o caso.
Antonia Melo é uma das aliadas mais importantes de Valda da Conceição. Ela coordena a Xingu Vivo, uma ONG com base em Altamira voltada para as pessoas e o ambiente do rio Xingu. Ela é uma das líderes da região em relação à situação da barragem, e recebeu oferta de segurança pessoal por causa das ameaças que recebeu quando o conflito em torno da construção da barragem de Belo Monte estava no auge.
“Apoiamos as famílias ribeirinhas que sofreram atentados por parte da Norte Energia e de Belo Monte”, disse Antonia Melo ao Mongabay. “Eles foram expulsos de seus lares e suas casas foram queimadas. Eles vieram para a cidade sem saber [para onde tinham sido levados], muitos sem qualquer compensação, e agora estão passando fome”.
Antonia Melo cita Valda da Conceição e seus parentes como apenas um exemplo das muitas famílias que tentam voltar ao rio. O Ministério Público Federal, a Defensoria Pública e o IBAMA estão trabalhando com a Xingu Vivo no caso, diz ela. “Existe um processo para ajudar as pessoas a voltar às ilhas para tentar reconstruir seus estilos de vida, o que vai ser realmente difícil sem a terra que constitui seu chão”.
Esse é o ponto crucial para Valda. Oito meses atrás, ela abriu um processo judicial para conseguir voltar a seu lar na ilha. O caso ainda não foi resolvido, mas ela está decidida em seu objetivo: “Quero minha terra de volta”.