Especialistas em saúde pública descobriram uma forte ligação entre sistemas inadequados de água e saneamento voltados às pessoas carentes do mundo em desenvolvimento e grandes surtos de doenças transmitidas por mosquitos como a Zika, a dengue e a chikungunya.
Recife, cidade com 3,7 milhões de habitantes, é o epicentro do surto do vírus da Zika no Brasil. Um fator que ajuda a proliferar a doença é que a cidade – construída em cima de mangues – tem um precário saneamento básico, tornando o centro urbano um terreno fértil perfeito para os mosquitos.
Metade da população brasileira tem sistemas de esgoto inadequados e 10% não possui nenhum. O governo brasileiro tem constantemente proposto a melhoria dos sistemas de água e saneamento, mas a combinação entre a falta de verba, a burocracia e a corrupção não têm permitido que isso ocorra.
Foram confirmados mais de 1.600 casos de microcefalia relacionados à Zika. O aumento ou a queda na incidência de Zika, dengue, chikungunya e outras doenças transmitidas por mosquitos depende, parcialmente, de maneira pela qual o Brasil lida com problemas de infraestrutura básica voltados à saúde pública.
Maria Josefa de Oliveira, na porta de entrada de sua casa, em Imbiribeira, bairro de Recife – uma cidade com 3,7 milhões de habitantes no nordeste do Brasil. As barras na janela e na porta e a placa feita a mão para o seu pequeno negócio de manicure de longa data, a mantêm firmemente nesse bairro de baixa renda e majoritariamente afro-brasileira.
Recife foi manchete no final de 2015 ao ser caracterizada como o epicentro da crise de microcefalia, e essa parte da cidade tem apresentado um dos maiores índices de casos envolvendo o vírus da Zika no Brasil – além de muitos casos de outras doenças transmitidas por mosquitos.
Mas, de alguma forma, a rua onde Oliveira mora foi poupada.
Maria Josefa declara que “aqui em casa ainda não tivemos nenhum caso (de Zika, dengue ou chikungunya). Até onde eu sei, poucas pessoas que moram por perto tiveram. Meu irmão, que mora na outra rua, teve dengue (febre). Tem também uma menina que mora por ali que teve chikungunya há uns cinco meses. Mas aqui, não tivemos nada”.
A minicure credita o baixo número de casos não a um milagre, mas sim à instalação de um sistema de esgoto de drenagem em sua rua: “antes, a rua costumava alagar. Mas isso não acontece mais. Melhorou 100%”. Essas inundações deixavam muita água parada, onde os mosquitos podem procriar e se multiplicar.
Maria Josefa tem sorte: embora o sistema de drenagem de água em sua rua tenha sido construído, os maiores projetos de infraestrutura de água em sua cidade não foram terminados – estão parados há mais de seis meses.
Quando questionado sobre o porquê de a construção em Recife ter parado, Dr. Guilherme Tavares, que trabalha para a SANEAR, órgão responsável pelo saneamento básico da cidade, responde: “Diferentes fatores trazem desafios. O maior é a falta de recursos financeiros e a burocracia para contratar empreiteiras para os projetos”.
Instalar sistemas de água e esgoto por toda a cidade custaria aproximadamente três bilhões de dólares, conforme revela Tavares à Mongabay. É uma quantia muito grande para qualquer cidade dispor, especialmente no Brasil, uma nação afetada pela atual e desastrosa crise econômica.
Guilherme explica que Recife está, atualmente, negociando com o estado para completar um dos maiores projetos de saneamento, o que levanta a questão da burocracia intratável no Brasil. Os contratos de saneamento da cidade estão atrasados por tanto tempo que logo vão expirar, e isso requererá que sejam renegociados.
Essa é uma boa notícia para os mosquitos transmissores de doenças, e uma má notícia para os brasileiros, talvez até mesmo para o mundo.
Os especialistas em saúde pública ressaltam que a falta de infraestrutura de saneamento básico, principalmente em lugares como Recife, poderá ser o principal fator para impulsionar o aumento do vírus, e o culpado por sua rápida disseminação.
Em março de 2015, Léo Heller, relator especial das Nações Unidas sobre o direito à água potável e ao saneamento básico, emitiu uma declaração lembrando o mundo de que “há uma forte ligação entre os precários sistemas de saneamento básico e o atual surto do vírus da Zika, transmitido por mosquitos, como também a dengue, a febre amarela e a chikungunya. O modo mais efetivo para enfrentar esse problema é melhorar os serviços deficitários” que atendem à população carente no mundo em desenvolvimento.
Mosquitos transmissores de doenças desenvolvem-se na “Veneza” da América do Sul
Recife é um viveiro ideal para os mosquitos. Conhecida como a Veneza da América do Sul e localizada no nível do mar, a cidade foi construída sobre um mangue em que dois rios desaguam no Oceano Atlântico, acarretando um natural problema de drenagem. O bairro de Imbiribeira está localizado em um pequeno espaço entre os caros condomínios de frente para a praia de Boa Viagem e o sistema ferroviário de Recife. Embora não pareça, o bairro esconde córregos que quase o tornam uma ilha.
Esse problema com a água é agravado pela insuficiente infraestrutura de saneamento básico tanto em Recife quanto em outros localidades urbanas e rurais do Brasil.
O Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) de 2014 relata que metade da população do país tem sistemas de esgoto precários, enquanto aproximadamente 10% não possuem nenhum. Como resultado, muitos dentre a população carente do país lutam todos os dias contra as dificuldades para garantir água potável e sistema de esgoto – uma questão difícil para a saúde pública que leva às condições ideais para a proliferação dos mosquitos transmissores de doenças.
Em Recife, a COMPESA (Companhia Pernambucana de Saneamento), contou à Mongabay que apenas 48% da cidade possui sistema de esgoto, mas esta porcentagem cai para 33% se considerada toda a região metropolitana e diminui ainda mais se levarmos em consideração todo o estado de Pernambuco.
Os dados do Ministério das Cidades, que supervisiona os problemas de saneamento, mostram que as cidades brasileiras mais ricas e industrializadas do sudeste – como o Rio de Janeiro, onde foi realizada a Olimpíada – tendem a ter maiores porcentagens de saneamento básico do que as áreas mais pobres das regiões Norte e Nordeste.
Mesmo assim, segundo a Companhia de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (CEDAE), aproximadamente metade dos esgotos do estado do Rio permanecem sem tratamento ao serem despejados na Baía de Guanabara, onde alguns esportes aquáticos da Olimpíada aconteceram.
Embora a Zika não seja causada somente pelo saneamento inadequado, o Ministério da Saúde brasileiro relata que Pernambuco teve o maior número de casos de microcefalia no país em 2014. A região nordestina registrou quatro vezes mais casos do que a região do sudeste, onde se encontra o Rio de Janeiro.
Falha no controle de mosquitos
O Aedes Aegypti tem sido identificado como o principal vetor por trás da disseminação do vírus do Zika, considerado pela OMS como o responsável pelo surto de casos de microcefalia no Brasil.
Entretanto, um segundo possível vetor para o vírus Zika foi identificado. Uma pesquisadora da FioCruz, em Recife, Dr.ª Constância Ayres, descobriu que o mosquito do gênero Culex e conhecido por ser o vetor do Vírus do Oeste do Nilo também é capaz de carregar o vírus do Zika, e mosquitos Culex infectados de Zika têm sido encontrados fora do laboratório.
A Dra. Lia Giraldo, médica e pesquisadora aposentada da Fiocruz na área de saúde pública, critica a abordagem básica do governo brasileiro no controle do mosquito, que enfatiza o uso de pesticidas, mas não foca o suficiente na melhoria da infraestrutura de sistemas de água e saneamento. “Estamos muito preocupados, pois a Organização Mundial de Saúde classificou o inseticida malathion como cancerígeno, e este é utilizado em quantidades extremamente altas na dedetização contra o Aedes Aegypti”.
Ela acrescenta que pesticidas não estão resolvendo o problema: “Por 30 anos este tem sido o modelo usado, e não conseguimos controlar os mosquitos. Então, temos provas suficientes de que este modelo não funciona. Os mosquitos, que antes se localizavam em áreas específicas, hoje estão presentes em todo o Brasil”.
A pesquisadora afirma ainda que epidemias transmitidas por mosquitos se tornaram mais frequentes no país, com alta taxa de morbidade.
Os políticos não investem em infraestrutura que não seja visível
José Martins de Oliveira vive na favela da Rocinha, Rio de Janeiro, uma comunidade não planejada de classe trabalhadora, há quase meio século. Membro ativo de um grupo de direitos civis conhecido como Rocinha Sem Fronteiras, organização que trabalha com moradores para ensiná-los quais são seus direitos e responsabilidades como cidadãos, José diz que a comunidade luta por infraestrutura de saneamento básico desde o começo dos anos 1980. Ainda assim, nada é feito, mesmo com a população exigindo ações.
“Temos 120 pessoas que comparecem quando fazemos reuniões sobre saneamento”, ele contou ao Mongabay. “Normalmente são 30. As pessoas querem que os canais de esgoto sejam cobertos, e que todo o lixo seja coletado. Quando há sistema de drenagem dos canais, há também saúde. Se não houver saneamento, não há saúde”.
A Rocinha possui 23 córregos de esgoto a céu aberto nas ruas. José e os demais moradores concordam que sistemas de água e esgoto raramente têm a atenção dos governos no Brasil, pois os políticos não acreditam que isso irá aumentar sua popularidade.
O governo federal destinou fundos à infraestrutura de água e esgoto na comunidade entre 2008 e 2012 através do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). “Mas o governo do estado apenas constrói coisas visíveis. Por exemplo, construíram uma ponte, o que, obviamente é muito bom, mas eles demoliram uma que já existia para construir outra”, explica José.
“O córrego principal de esgoto deveria ser canalizado, mas eles não o canalizaram”, queixa-se. “Quando chove, como não está canalizado, a vala transborda. O mais importante para a comunidade é o saneamento. Mas o saneamento é subterrâneo, né? Eles [os políticos] não fazem isso porque não é visível”.
Segundo José, projetos de obras públicas foram completamente interrompidos na Rocinha em 2011, logo após as eleições federais de 2010 que conduziram Dilma Rousseff ao poder. Todo projeto de infraestrutura que estava em andamento permaneceu incompleto e estagnado. No começo do ano, o Ministério Público entrou com uma ação contra o estado para tentar retomar os projetos de saneamento prometidos.
Um mosquito não é mais forte do que um país inteiro
Críticos sociais dizem que há duas razões primárias que explicam por que o Brasil, maior economia da América do Sul, falhou em cumprir os desafios de fornecer infraestrutura de água e esgoto para seus cidadãos mais carentes. A primeira razão é a de que projetos de infraestrutura são grandes e caros, como mencionado acima. Os críticos alegam que o governo está mais preocupado em angariar fundos para a construção de uma hidroelétrica gigantesca na Amazônia, do que a construção de tubulação de escoamento de águas pluviais nas cidades. A recente investigação policial denominada Lava Jato evidenciou um segundo problema: a corrupção é frequente nas empreiteiras, e quanto maior o projeto, maior é a oportunidade de desviar dinheiro.
Isso impede que muitas das famílias de baixa renda do Brasil sejam capazes de contar com acesso regular à água corrente. Então durante as horas limitadas em que a água municipal está disponível, as pessoas estocam-na em baldes ou outros recipientes abertos que encontrem, formando acidentalmente criadouros para os mosquitos em suas casas. Essas condições, apontam os pesquisadores, afeta quase que exclusivamente as comunidades de baixa renda, que são desproporcionalmente afro-brasileiras.
“Podemos criar mosquitos estéreis ou utilizar ferramentas sofisticadas da Internet para mapear dados globalmente”, disse Léo Heller em sua declaração nas Nações Unidas em 2015, “mas não devemos esquecer que hoje, um milhão de pessoas na América Latina não possuem acesso a saneamento básico, e setenta milhões de pessoas não possuem água encanada em suas residências”.
Um estudo classificou o Rio de Janeiro como a 37º dentre os municípios brasileiros devido a sua infraestrutura de saneamento. Tais condições levaram à criação de uma campanha do governo para encorajar a população a eliminar a água parada de suas casas. Propagandas em ônibus e cartazes pela cidade mostram o desenho de um inseto com o slogan “Um mosquito não é mais forte do que um país inteiro”. Infelizmente, dizem os especialistas em saúde pública, campanhas publicitárias não substituem sistemas eficientes de água e esgoto.
O círculo hidro-social
Em 2014, o governo da presidente Dilma Rousseff anunciou o Plano Nacional de Saneamento Básico, que traçava uma estratégia com investimento estimado em R$ 508 bilhões durante duas décadas para garantir que todos os brasileiros teriam acesso a sistemas de água e esgoto até 2033.
Mas desde o anúncio do plano, o país tem passado por uma dura recessão econômica, em parte motivada pelo colapso dos preços de petróleo e commodities e agravada pelo escândalo de corrupção da Operação Lava Jato e o julgamento do impeachment de Dilma Rousseff. O governo também arcou com os custos substanciais para sediar a Copa do Mundo de 2014 e a Olímpiada de 2016, custos estes potencializados pela corrupção endêmica conforme revela uma série de investigações.
Para Ana Brito, que coordena um grupo de pesquisa do Rio de Janeiro focado em questões hídricas urbanas, a relação entre as finanças e a infraestrutura básica do país constitui em um “ciclo hidro social”. Ela e outros pesquisadores argumentam que “a circulação de água está fundamentalmente ligada à circulação de dinheiro e capital. Assim como outros bens e serviços urbanos, a circulação de água é uma parcela da economia política que estrutura as relações de poderes e dá forma e coerência aos espaços urbanos”.
Em Duque de Caxias, município do Rio de Janeiro com aproximadamente um milhão de habitantes, tais “relações de poder” deixaram muitos sem os serviços mais básicos. No município, “há algumas casas que só recebem serviço de água a cada 15 dias, ou uma vez por semana. Não há regularidade no fornecimento de água como há em qualquer outro país”, contou a coordenadora à Mongabay. “Na zona sul do Rio de Janeiro [onde alguns dos bairros mais nobres da cidade se encontram] têm-se acesso regular, mas em outras áreas, não. Especialmente na periferia, nas áreas pobres, não há acesso universal”.
Ana questiona se o multibilionário Plano Nacional de Saneamento Básico cumprirá suas promessas de fornecer infraestrutura de saneamento básico a todos, especialmente levando-se em consideração a economia do país, as desventuras políticas e a corrupção endêmica. A coordenadora reitera a visão de José quanto à falta de vontade política: “Há um resultado que podemos ver em longo prazo quando há redução na série de doenças relacionadas à água. Então, este é um resultado em longo prazo [para o qual se deve haver empenho], mas o Brasil funciona basicamente de perspectiva em curto prazo.”
Até agora, foram confirmados mais de 1.600 casos de microcefalia ligados à Zica no Brasil. Se muitos outros casos ocorrerão no futuro e se a incidência de Zika, dengue, chikungunya e outras doenças transmitidas por mosquitos prevalecerão, só o vigor com qual o Brasil lidará com seus problemas relacionados à infraestrutura de saúde pública dirá.