Há um ano, o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão matou 19 pessoas e poluiu todos os 663 km de comprimento do rio Doce, com 40 bilhões de litros de lama tóxica de rejeitos. Esta é a pior catástrofe ambiental e de mineração na história do Brasil.
No final de outubro, promotores públicos federais acusaram criminalmente 22 executivos e quatro empresas (Samarco, Vale, BHP Billiton e Consultoria VOGBR) pelos respectivos papéis na catástrofe que ocorreu na cidade de Mariana, no estado de Minas Gerais.
A petição inicial federal, com 272 páginas, inclui inúmeros documentos internos da empresa que parecem mostrar que a Samarco sabia da ameaça que sua barragem de rejeitos representava para a segurança pública, mas pouco fez para resolver o agravamento do problema.
Estes documentos internos chegavam ao ponto de estimar as mortes que provavelmente seriam causadas pelo rompimento da barragem. A estimativa da Samarco de 20 ou mais mortes foi apenas um número acima do total efetivo de 19 pessoas mortas. A petição inicial enumera também danos à pesca comercial (14 toneladas de peixes mortos), às florestas e às comunidades.
As autoridades federais publicaram oficialmente informações sobre suas conclusões em relação ao rompimento da barragem de rejeitos de Fundão: um relatório extenso e condenatório que surge na véspera do aniversário de um ano do evento. Os promotores públicos acusaram criminalmente 22 executivos e quatro empresas pelos respectivos papéis na catástrofe que ocorreu na cidade Mariana, no estado de Minas Gerais.
A petição inicial de 272 páginas, elaborada pelo Ministério Público Federal (MPF), oferece uma descrição vívida da maior tragédia ambiental do país, um evento que causou a morte de 19 pessoas.
O documento oficial do MPF traça a história do colapso da colossal barragem corporativa que lançou 40 bilhões de litros de lama tóxica de rejeitos, devastando a fauna selvagem, a vegetação, propriedades e 663 km do rio antes de atingir o Oceano Atlântico. O relatório indica que esse desastre ainda está em andamento, com mais 15 bilhões de litros de lama que continuam vazando da barragem arruinada.
As empresas acusadas incluem a Samarco (proprietária da barragem), junto com as empresas controladoras Vale e BHP Billiton. Todas são acusadas de homicídio qualificado com eventual intenção (quando não há intenção de matar, mas há risco de causar a morte).
Também serão acusadas por homicídio qualificado de 21 das 22 pessoas mencionadas pelos procuradores do MPF. Entre os executivos acusados da Samarco estão o CEO, Ricardo Vescovi (em licença desde dois meses após o desastre), o diretor geral de operações, Kléber Terra, e três gerentes de operações. Além destes, também são acusados cinco funcionários da Vale e da BHP, e onze membros do conselho de administração da Samarco, todos apontados pela Vale e BHP.
Entre os membros do conselho de administração acusados estão cinco brasileiros, dois americanos (Margaret McMahon Beck e Marcus Philip Randolph), um cidadão britânico (Stephen Michael Potter), um cidadão francês (Jeffery Mark Zweig), um sul-africano (James João Wilson), e um australiano (Antonino Ottaviano).
A Samarco, a Vale e a BHP Billiton são acusadas de 12 crimes ambientais. Uma quarta empresa, a Consultoria VOGBR, é acusada, juntamente com seu engenheiro sênior, Samuel Santana, de apresentar um relatório falso sobre a estabilidade da barragem.
“Os acusados tinham conhecimento dos problemas da barragem”
“Ao analisar o material reunido – incluindo os documentos da empresa e os relatórios da polícia federal [unidade de crimes ambientais] e civil – é evidente que os acusados tinham conhecimento dos problemas da barragem e conscientemente decidiram negligenciar a segurança da estrutura”, disse o promotor público José Adércio Leite Sampaio à Mongabay.
O coordenador da força-tarefa do MPF apontou que as leis brasileiras que regulamentam a segurança da barragem de mineração são relativamente fracas e “cheias de brechas”. As inspeções estaduais e federais são mínimas e resta às empresas determinar quais riscos as barragens de rejeitos podem apresentar à população e ao ambiente. “O [governo] não inspeciona todas as barragens existentes no país, ela é feita por amostragem. Apenas 2% das grandes barragens são inspecionados anualmente pelos órgãos ambientais”, informou o promotor público.
Minas Gerais tem 317 barragens de rejeitos (47% do total do país), de acordo com a Agência Nacional de Águas. “Nesse estado, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) conta apenas com dois técnicos para o trabalho de campo”, explicou Sampaio. “Devido a essa falta [de fiscais], o DNPM baseia seus relatórios na autodeclaração do proprietário da barragem”.
Segundo a literatura geotécnica, o método de construção utilizado pela Samarco no terreno de Fundão é o mais barato e mais instável de todos os modelos de barragens de rejeitos existentes. “Esse tipo de terraplanagem para barragens de rejeitos não deve mais ser permitido no Brasil”, declarou, Sampaio, categoricamente.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Samarco disse à Mongabay: “O Secretário de Estado de Minas Gerais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e o DNPM não tinham uma frequência regular para as inspeções da barragem de Fundão. Nossos consultores independentes e internacionais verificavam a estrutura de três a quatro vezes por ano, dependendo da empresa ou do profissional contratado”.
A Samarco respondeu oficialmente às acusações contra ela dizendo que “refuta a acusação do MPF, que rejeitou a defesa e os depoimentos da empresa apresentados durante a investigação, e prova que não tinha conhecimento prévio dos riscos para a estrutura [da barragem]”.
A Vale também “rejeita a denúncia do MPF, que [optou por] ignorar os elementos de prova apresentados [pela empresa] mostrando a ausência de qualquer conhecimento prévio de riscos reais para a barragem de Fundão pela Vale, por seus executivos e seus funcionários, [e] tenta injustamente lhes atribuir alguma forma de responsabilidade inaceitável a todo custo”.
Quando contatada pela Mongabay para esta história, a Vale respondeu que seu porta-voz não estava disponível para entrevista. O CEO André Euzébio, da VOGBR, disse por e-mail que a empresa não daria uma declaração.
Problemas desde o início
Enquanto a Samarco e a Vale – a maior produtora mundial de minério de ferro – afirmam que não sabiam sobre os perigos reais que a barragem de Fundão enfrentava, os documentos da empresa obtidos pelo Ministério Público Federal parecem mostrar o contrário. Parece que os erros foram cometidos desde o início do projeto e a negligência também parece estar em evidência.
“Os documentos mostram que, desde a fase de planejamento, as empresas e os funcionários acusados já tinham conhecimento da existência de falhas geológicas na região”, indica a petição inicial do MPF.
Um dos documentos registrados na petição inicial é o relatório da pesquisa geológica e geotécnica conduzida pela empresa de consultoria Pimenta de Ávila, intitulado: “Processo erosivo e trabalhos de restauração do Dique 1”. O MPF constata que: “Em 22 de setembro de 2008, a Samarco obteve sua licença de operação. Em dezembro, começou o depósito de rejeitos. No entanto, no início das operações, a Samarco identificou um problema de funcionamento na barragem. Durante uma inspeção realizada entre 1 e 5 de dezembro de 2008, pelo consultor internacional Andrew Robertson, contratado pela Samarco, identificou-se provas graves responsáveis pelo mau funcionamento dos principais dispositivos de drenagem interna do sistema de dique principal. Constatou-se [que a drenagem deficiente conduziu a um aumento e] acúmulo impróprio de água no reservatório do Dique 1”.
Evidências mais condenatórias ainda são apresentadas: “Na reunião [do conselho da Samarco] de 22 de julho de 2009, os membros do conselho acusados ouviram relatos dos diretores da Samarco (entre eles, [o então diretor de operações e sustentabilidade] Ricardo Vescovi) sobre os problemas da barragem de Fundão. O conselho manifestou sua preocupação sobre a eficácia da solução proposta e solicitou à equipe da Vale de gerenciamento da barragem para trabalhar em seu nome”.
Mas aparentemente, esses esforços foram ineficazes: “Em setembro de 2014, os engenheiros da Samarco se reuniram com a empresa de consultoria Pimenta de Ávila para discutir sobre o deslizamento do maciço [um precursor para o terroso rompimento da barragem]”.
Um relatório de inspeção do sistema de eliminação de rejeitos datado de 4 de setembro de 2014 salienta que: “Várias rachaduras transversais na crista do maciço [foram observadas pela] equipe de inspeção da Samarco. As rachaduras caracterizam um início de [um] movimento de deslizamento do bloco do maciço, e a Samarco imediatamente construiu um aterro de reforço no sopé do recuo da encosta”, para lidar com o problema.
Um outro documento interno da Samarco, intitulado: “Manual de riscos corporativos da Samarco”, mostra claramente que a empresa estava ciente do problema no Fundão: “O risco identificado para o ano de 2015 [engloba] perturbações e distúrbios estruturais geotécnicos que podem ocorrer nas operações do dia-a-dia [de várias barragens da Samarco]. Incluídas nesse risco, estão as estruturas de água e eliminação de rejeitos de Fundão, Santarém, Germano, Matipó, Norte Ubu, Cava de Germano e Muniz Freire”.
Sobre a questão de “Saúde e Segurança”, o Manual de riscos corporativos da Samarco mostra que a empresa tinha identificado as possíveis consequências de um rompimento da barragem de Fundão: “mais de 20 mortes. Deficiência permanente (em mais de 30% do corpo) a mais de uma centena de pessoas”.
A petição inicial do Ministério Público Federal observa que: “A precisão do documento [interno da Samarco] chega a ser chocante”.
Uma conta da destruição
A petição inicial do MPF apresenta detalhes pavorosos das consequências do rompimento da barragem. Era tão imensa a força monstruosa da inundação de lama tóxica, que partes de corpos humanos foram encontradas até 69 km de distância de onde algumas das 19 vítimas morreram. O corpo de um homem falecido, Edmirson José Pessoa, não tinha sido recuperado até pouco tempo. O antigo funcionário da Samarco estava trabalhando perto da barragem quando houve o rompimento, por volta das 15h30, em 5 de novembro de 2015.
De acordo com o MPF, a inundação da lama de rejeitos atingiu e impactou 39 cidades de dois estados.
Bento Rodrigues, uma cidade localizada abaixo do nível da barragem, a apenas 5 km de distância, sofreu os piores impactos e não existe mais. Tinha 585 moradores no momento do desastre e viu cerca de 80% das suas 257 construções destruídas.
“Na corrida pela vida, a maioria das pessoas não teve tempo para salvar quaisquer pertences, sendo forçadas a fugir para um local mais alto onde não pudessem ser arrastadas pela lama”, registra o relatório do MPF.
Das 195 propriedades rurais atingidas em Minas Gerais, 25 foram totalmente destruídas, de acordo com a petição inicial. A Secretaria de Estado para o Desenvolvimento Regional, Gestão Urbana e Metropolitana de Minas Gerais constatou que centenas de casas foram destruídas, juntamente com escolas, igrejas, capelas e centros comerciais.
“Os danos para a saúde humana são sentidos neste dia, especialmente nas cidades de Mariana e Barra Longa. Nesta última, houve um aumento de 1.000% na procura por cuidados médicos, com constantes denúncias de secagem da lama [tóxica] na região [que] ainda não [foi] removida”, relata o documento do MPF.
Danos à fauna e à flora
Na sequência do desastre da Samarco, 14 toneladas de peixes mortos foram coletadas ao longo dos rios Doce e Carmo. A lama de sílica e minério de ferro também causou a destruição de habitats, matando, entre outros, crustáceos e demais animais aquáticos; animais terrestres lentos, como cobras, tartarugas, rãs e suas proles; animais que viviam em tocas ou ninhos enterrados no solo; insetos, aracnídeos e anelídeos”.
“A zona marítima da região afetada, a costa norte do estado do Espírito Santo, faz parte de um dos locais mais importantes de criação de tartarugas marinhas”, indicou o relatório. “Duas espécies ameaçadas desovam ali, a tartaruga-marinha-comum (Caretta caretta) e a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea)”. Essa região costeira é o único lugar em que a tartaruga-de-couro procria no Brasil. Além disso, “o derramamento de rejeitos destruiu áreas de reprodução do camarão de água doce, [enquanto] espécies [aquáticas] que transportam ovos [foram deixadas] em um estado de desconforto respiratório”.
A Mata Atlântica, um dos biomas mais ameaçados no Brasil, também sofreu danos significativos. As florestas protegidas foram destruídas ou danificadas. Os danos abrangeram a mata primária e a vegetação secundária em estágios intermediários e avançados de regeneração.
Próximos passos
Na semana passada, o jornal O Globo relatou que a proposta de retomada das atividades de mineração pela Samarco na região tem sido uma questão de discordância séria entre ela e os proprietários da empresa, a Vale e a BHP Billiton.
O CEO Murilo Ferreira, da Vale, declarou que o reinício da exploração de minérios pela Samarco não é viável devido à sua utilização atual de barragens de rejeitos contra a corrente. Mas o diretor de integridade corporativa da Vale, Clóvis Torres, anteriormente defendeu o rápido regresso das operações da Samarco. A empresa “está completamente estagnada e precisa gerar novamente o dinheiro dos impostos, empregos e riqueza”, declarou. Este último parecer também é compartilhado por Fernando Coelho Filho, Ministro de Minas e Energia. Ele afirmou que a Samarco pode ter sua licença revista de forma a retornar à operação no início de 2017.
Em novembro, o MPF irá provavelmente fazer recomendações, tanto para o Congresso como para os Ministérios de Minas e Energia e Meio Ambiente, quanto as mudanças necessárias a fim de melhorar as regulamentações de segurança das barragens.
No que diz respeito ao processo contencioso contra as empresas e os indivíduos acusados, o promotor federal Sampaio foi cauteloso sobre os próximos passos: “O estágio atual do caso é muito complicado. Agora, [aguardamos] a resposta oficial do acusado”.