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1.6 milhões de brasileiros lutam para se recuperar do derramamento de resíduos tóxicos causados pela barragem de Fundão

  • Em 05 de novembro de 2015, as barragens de rejeitos da mina de ferro Fundão romperam, despejando 50 milhões de toneladas de minério e resíduos tóxicos no Rio Doce. O vazamento poluiu o rio e as áreas de cultivo, matou peixes e animais silvestres e contaminou a água potável com lama tóxica ao longo dos seus 853 km de extensão.

  • O acesso à água está em estado crítico nas comunidades do Rio Doce desde o acidente de mineração industrial, e uma seca na região está piorando a crise.

  • Os habitantes do Vale do Rio Doce estão frustrados com o que consideram uma resposta lenta ao desastre ambiental por parte do governo federal e da empresa dona da barragem, a mineradora Samarco – joint venture entre a Vale e a BHP Bliton, duas das maiores companhias de mineração do mundo.

  • Cerca de 1.6 milhões de pessoas continuam sujeitas aos riscos à saúde em decorrência dos metais pesados contidos na água e apresentam crescente falta de esperança tanto nas instituições públicas que deveriam mantê-los seguros quanto nas grandes indústrias que convivem com as comunidades.

Some of the horrific damage done to the Rio Doce by the Samarco tailings dam collapse. Photo by Romerito Pontes from São Carlos licensed under the Creative Commons Attribution 2.0 Generic license
Um exemplo dos horríveis danos provocados ao Rio Doce pelo rompimento da barragem de rejeitos da Samarco. Foto tirada por Romerito Pontes, de São Carlos, sob licença Creative Commons Attribution 2.0 Generic license

“Eu estava fazendo sorvete e não ouvi o barulho”, lembra Neuza da Silva Santos. “Minha irmã chegou gritando que a barragem tinha rompido e fui para fora. O rio já estava cheio de lama… Voltei para dentro e fechei as janelas porque pensei que eu iria voltar. E corremos.”

Então, Neuza tomou uma decisão crucial. Ela desistiu de correr, entrou em seu carro e dirigiu até o topo do morro mais próximo. “Se eu tivesse ido a pé, não teria conseguido”, disse.

Neuza é uma das sobreviventes do acidente envolvendo a barragem de Fundão que se rompeu no dia 5 de novembro de 2015 e destruiu a pequena cidade de Bento Rodrigues, localizada logo abaixo do reservatório de rejeitos. No momento em que chegou ao topo do morro, ela conta que sua casa estava coberta de lama.

Embora os relatórios mostrem que a Samarco, tinha ciência de um vazamento no reservatório dez horas antes do acidente, nenhuma sirene de alerta tocou e 19 pessoas, incluindo uma criança, morreram.

Mas o rompimento da barragem é só o começo do pesadelo envolvendo o Rio Doce.

De acordo com um relatório da ONU, 50 milhões de toneladas de minério de ferro e resíduos tóxicos foram despejados no rio naquele dia. A lama cobriu as margens do rio e as terras de cultivo ao longo dos 853 km de sua extensão, matando peixes e outros animais silvestres e contaminando o abastecimento de água potável em grande parte do vale.

Survivor Neuza da Silva Santos sits between two of her colleagues from an agricultural cooperative that produces a pepper jelly. They all lived in Bento Rodrigues, the town destroyed by the toxic mud flow, and have re-started their cooperative with support from Samarco, the company that owned the dam. The women originally started their coop in 2002 as an economic alternative to mining. Marlene Iaquil Serra sits on the left, and Keila Vardeli Oialho on the right. Photo by Zoe Zullivan
A sobrevivente Neuza da Silva Santos sentada entre duas de suas colegas da cooperativa agrícola que produz geleia de pimenta. Todas elas viviam em Bento Rodrigues, a cidade destruída pela enxurrada de lama tóxica, e precisaram recomeçar sua cooperativa com a ajuda da Samarco, empresa dona da barragem. A mulher originalmente começou sua cooperativa em 2002 como uma alternativa econômica para a mineração. Marlene Iaquil Serra está sentada à esquerda, e Keila Verdeli Oialho, à direita. Foto tirada por Zoe Zullivan

Agora, onze meses mais tarde, depois que a mídia se foi, cerca de 1.6 milhões de pessoas que vivem às margens de toda a extensão do rio localizado no Sudeste do Brasil continuarão lidando não apenas com os riscos à saúde devido aos metais pesados na água, mas também com uma profunda crise de confiança tanto nas instituições públicas que deveriam mantê-los seguros quanto nas grandes indústrias que convivem com as comunidades.

Uma tragédia ambiental desnecessária

Segundo o IBGE, mais de 68 mil pessoas trabalhavam em mineradoras no estado de Minas Gerais em 2013, dentre as quais cerca de 2.100 perderam seus empregos no primeiro semestre de 2015.

O setor industrial – em especial as mineradoras – rende mais de R$ 4,6 bilhões à cidade de Mariana, cenário do desastre. A mão de obra industrial, no entanto, custa um terço dessa quantia. A oferta de empregos e indicadores econômicos como esses ajudam a explicar o poder e o privilégio que a indústria de mineração goza no estado – mesmo levando em consideração o rompimento da barragem de Fundão e outros acidentes industriais que ocorreram ao longo dos anos.

De acordo com um determinado relatório, a Samarco trabalhava na ampliação do reservatório de resíduos de Fundão quando o rompimento aconteceu. O plano era ligar duas barragens de rejeitos para que o reservatório se tornasse cinco vezes maior. A rede Globo divulgou que os sensores da Samarco já haviam detectado um possível risco de colapso em 2014 e 2015 antes do rompimento, embora a barragem tenha sido inspecionada em julho do ano passado segundo a empresa.

Devido à queda significativa do preço mundial do minério de ferro em 2015, a Samarco aparentemente concentrava-se em expandir sua produção visando evitar perda de capital, e essa ênfase deve ter se sobreposto às medidas básicas de segurança. A Samarco é uma joint-venture entre a Vale e a australiana BHP Billiton, duas das maiores mineradoras do mundo.

A massive wave of toxic mud swept away the lives of locals living below the mining waste impoundment. Photo by Romerito Pontes from São Carlos licensed under the Creative Commons Attribution 2.0 Generic license
Uma enorme onda de lama tóxica varreu a vida de moradores da região. Foto de Romerito Pontes, de São Carlos

Dirk van Zyl, professor do curso de Engenharia de Minas da Universidade de Colúmbia Britânica, Canadá, declarou à agência de notícias Bloomberg News que desastres como o que houve no Rio Doce “custam muito mais caro do que fazer as coisas do modo correto”.

Zyl observa que uma técnica de armazenamento de resíduos de minério utilizada no Chile, onde terremotos são comuns, custa dez vezes mais que a solução envolvendo barragens de rejeitos utilizada no Brasil, mas é mais segura. O professor acrescenta que uma estimativa inicial para a recuperação da região afetada, feita pelo Deutsche Bank, foi avaliada em mais de um bilhão de dólares. Questionado a respeito de uma estimativa atual, o IBAMA alega que é impossível avaliar o custo atual da restauração ambiental.

David Chambers, do Center for Science in Public Participation, é coautor de uma publicação sobre segurança em minas, ainda no prelo. Seu estudo insere o desastre do Rio Doce em uma tendência global, na qual técnicas baratas de armazenamento em reservatórios cada vez mais frequentemente se revelam falhas e resultam em catástrofes. Ele argumenta que os legisladores deveriam proibir essas estruturas.

Cada local apresenta seus próprios problemas, diz Ben Chalmers, vice-presidente da Associação Canadense para o Desenvolvimento Sustentável em Minas, e também citado no artigo da Bloomberg News. Chalmers afirma que métodos de armazenamento devem variar de acordo com as circunstâncias, e que alguns rejeitos de mineração, como aqueles que contêm grande quantidade de sulfeto, podem ser mais seguros submersos em água. Esta opção pode funcionar bem se o armazenamento a seco não for uma opção viável em uma região tropical ou subtropical como o Brasil, ou se a produção de minério for muito alta.

É consenso entre especialistas que técnicas mais seguras de armazenamento custam mais, porém essas medidas de segurança também garantem margens de lucro em curto prazo. Para algumas mineradoras, os ganhos em curto prazo com o represamento de resíduos e outros atalhos superam a viabilidade e a segurança em longo prazo.

Officials continue to assess the destruction and ongoing environmental harm caused by the dam's failure. Photo by Romerito Pontes from São Carlos licensed under the Creative Commons Attribution 2.0 Generic license
Autoridades continuam a avaliar a destruição e os danos ambientais ainda em andamento causados pelo rompimento da barragem. Foto tirada por Romerito Pontes, de São Carlos, sob licença Creative Commons Attribution

Críticos dizem que a Samarco e a Vale se enquadram nessa categoria. A empresa Vale, uma das gigantes do setor, recebeu em 2012 o título de “Pior Empresa do Mundo”, por apresentar o maior “desprezo pelo meio ambiente e direitos humanos” e por violar leis trabalhistas e direitos humanos em 39 países.

Comunidades do Rio Doce tentam recuperar-se

A maioria dos moradores ribeirinhos ao longo do Rio Doce possui a opinião de que tanto a Samarco quanto a Vale devem ser totalmente responsabilizadas pelo desastre na barragem de Fundão. Em abril deste ano, aproximadamente 150 pessoas participaram de um evento na cidade de Governador Valadares voltado à calamidade do Rio Doce. Seu objetivo era reunir as manifestações das comunidades ribeirinhas a fim de exigir justiça por parte da Samarco e de suas empresas controladoras.

Durante um painel de debates, Douglas Krenak alertou: “Ela [A Natureza] é muito generosa, mas quando é hora de pagar a conta, ela não faz distinção entre rico ou pobre, negro ou índio. Ela tenta trazer equilíbrio, e nós temos que correr atrás para que essas grandes empresas não destruam aquilo que estamos construindo. A situação é muito séria. As pessoas querem proteger uma determinada nascente, o rio ou suas plantas … mas a mineradora continua fazendo o que fazia antes. Não basta fazermos o que estamos fazendo aqui embaixo, quando, lá em cima, no coração do nosso rio, a empresa está gerando cada vez mais calamidades”.

Desde o acidente da barragem, o acesso à água permanece criticamente difícil nas comunidades do Rio Doce; além disso, uma seca na região está piorando a crise. Dr. André Cordeiro Alves dos Santos, pesquisador da Universidade Federal de São Carlos que está trabalhando com uma equipe de cientistas independentes para monitorar a qualidade da água do rio, declarou à Mongabay que a estação chuvosa revelou-se insuficiente para abastecer, com água adequada, os municípios da bacia do Rio Doce: “Choveu menos que a média, [por isso] algumas cidades que estavam usando outras fontes de água estão agora tendo dificuldades … porque muitos rios e poços secaram”.

Geovany Krenak, caçique, or chief, of the Krenak indigenous group, wears traditional body paint on a day of celebration. Photo by Zoe Sullivan
Geovany Krenak, cacique da tribo Krenak, usa pintura corporal tradicional em dia de celebração. Foto por Zoe Sullivan

Para a comunidade indígena Krenak, que vive em uma colina entre um leito de rio seco e o poluído Rio Doce, o desastre fez mais do que destruir o seu abastecimento de água. A palavra “Watu” é o nome dado em Krenak para o curso d’água que significa “Rio Sagrado”, ou seja, o cacique da tribo, Geovany Krenak, diz que a hidrovia está intimamente ligada ao seu povo: “O rio faz parte da minha cultura, da minha vida, minha essência. Nós o consideramos sagrado. Na medida em que se destrói algo sagrado, a cultura de um povo é abalada”.

No rio, a comunidade nadava, pescava e brincava. Agora, a sua principal fonte de alimento acabou, e não há lugar para refrescar-se nos dias quentes – ou mesmo para obter água potável. Caminhões-pipa pagos pela Samarco estão fornecendo água para a comunidade desde o desastre, mas, os moradores se queixam de que esta água possui altos níveis de cloro, que irritam a pele e o sistema digestivo.

Para Geovany Krenak, a questão vai além dos problemas físicos que a comunidade enfrenta, tangenciando um problema existencial. “Vieram as guerras, as barragens hidrelétricas, a mineração. Tudo isso é, indiretamente, uma maneira de eliminar as pessoas. Um povo é extinto quando seus locais sagrados são eliminados. É um massacre indireto”, declara.

A Agência Pública, organização brasileira de reportagem e jornalismo investigativo, relata que a leniência governamental e a impunidade empresarial são temas recorrentes na maneira pela qual o Brasil lida com catástrofes ambientais. Eduardo Santos de Oliveira já trabalhou em outros rompimentos de barragens em Minas Gerais. Agora membro de uma força-tarefa do Ministério Público encarregada do caso Samarco, disse à Agência Pública de que a causa do desastre é uma soma de coisas: “Um acidente dessa proporção nunca acontece por esta ou aquela razão. Via de regra, é uma soma de omissões ou decisões equivocadas”. No entanto, ele também admitiu que tais represamentos representam para as empresas de mineração uma forma relativamente barata de lidar com seus resíduos, mesmo que existam melhores opções.

protest. The sign on the cross says "Watu: The river is our relative." Photo by Zoe Sullivan
Protesto: a placa na cruz diz: “Watu: O rio é nosso parente”. Foto tirada por Zoe Sullivan

A leniente cultura regulatória do Brasil suscita a possibilidade de que outros desastres análogos ao rompimento da barragem de Fundão ocorram conforme a infraestrutura para mineração e outras indústrias envelheçam e se deteriorem. Esta preocupação tornou-se ainda maior neste ano, em que o governo de Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores – mais propenso a ajudar os cidadãos mais necessitados do Brasil – foi suplantado pelo governo muito mais conservador de Michel Temer do PMDB.

O jornal Folha de Sâo Paulo destacou um relatório preparado pela Samarco, por ordem das autoridades judiciais brasileiras, que mencionou a possibilidade de um desastre ainda maior se não houver prevenção a fim de impedir o rompimento dos represamentos de resíduos que restaram em Mariana. Ao se romperem, essas barragens poderão liberar um número estimado de 105 bilhões de litros de resíduos compostos por rejeitos de ferro. O jornal também informou que o Brasil tem 16 barragens voltadas à mineração que são consideradas inseguras, e que a lama tóxica continua a vazar da barragem rompida de Fundão a despeito de uma ordem judicial determinando que a Samarco sane o problema.

A vida sem o rio sagrado

Para as pessoas que vivem no curso do Rio Doce, essas ameaças potenciais estão sendo deixadas em segundo plano diante da necessidade imediata de se encontrar água potável. A cidade de Governador Valadares, com população aproximada de 280.000 pessoas, ficou sem água em um período de quase duas semanas após o rompimento da barragem. Durante um protesto no dia 15 de abril, os participantes que conversaram com a Mongabay concordaram com a necessidade de responsabilizar a Samarco pelo desastre.

Pedro Costa, pai de uma criança de 18 meses, contou à Mongabay que ele considerava o protesto importante. “Nós estamos sofrendo muito com os efeitos do desastre. Tenho uma filha pequena e estou muito preocupado com a qualidade da água. As empresas dizem que a água está própria para uso, mas outras fontes dizem que não. Então, medidas precisam ser tomadas e os culpados devem ser punidos”.

A dredging machine near the town of Rio Doce removes some of the solidified toxic sludge that flowed downstream from the broken dam. Photo by Zoe Sullivan
Máquina de dragagem perto do município de Rio Doce remove parte da lama sólida e tóxica que escoa da barragem rompida rio abaixo

Muito longe do local do desastre, na vila litorânea de Regência, Espírito Santo, a escola estadual está sem água desde o ocorrido. A professora Luceli Gonçalves Rua diz que a escola tem sido forçada a depender das doações de pessoas físicas, da igreja e de outras entidades para suprir suas necessidades. “A própria prefeitura da nossa cidade não se preocupou se a escola de Regência, uma entidade do estado, tinha água para oferecer a suas crianças. Temos recebido água de várias entidades, mas não da nossa prefeitura”.

Maria Ofrecida Calha de Souza, professora de artes, diz que os alunos estão sofrendo: “Na escola, há muitas crianças voltando para casa com dores de cabeça e diarreia depois que essa lama chegou à comunidade”. Ela reclama que o governo não está protegendo a água potável. “Geralmente eles abastecem as cisternas e a água não é tratada. Muitas vezes, a água chega às nossas casas, mas sem o tratamento adequado”.

A Samarco está providenciando amostras e análises da água do Rio Doce para o IBAMA. Um relatório do órgão, publicado em março, revela que os níveis de chumbo presente na água estavam dentro dos limites legais por todo o período de monitoramento, mas os níveis de ferro e manganês estavam ambos muito acima do limite. Excesso de ferro pode provocar diarreia e vômito, enquanto altas doses de manganês afetam o sistema nervoso central e podem causar tremores e fraqueza, além de impotência.

Aqueles que moram às margens do Rio Doce reconhecem que o rio já estava contaminado antes do desastre de novembro, mas um sentimento de extrema frustração quanto à resposta inadequada dos setores público e privado agora parece ter tomado conta dos que moram às margens ou perto do rio. Cordeiro Alves dos Santos tem a convicção de que os danos ao rio provocados pelo desastre são incalculáveis: “Não creio que conseguiremos recuperar o rio do modo como era antes”.

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