É um conflito de interesses para as ONGs ambientais – que têm como princípio lutar pela preservação da natureza – receber contribuições de empresas de mineração que, pela sua própria natureza, podem causar impactos negativos no meio ambiente?
Entre 2009 e 2014 o Fundo Vale investiu mais de US $ 30 milhões em projetos ambientais de 25 organizações em sete estados da Amazónia, em todo o Brasil.
ONGs ambientais no Brasil devem agora concentrar-se em ajudar a prevenir novas catástrofes, uma vez que há o risco de rutura de outras barragens da Samarco, diz um observador.
A tragédia que atingiu Minas Gerais no início de Novembro, causada pela rutura de duas barragens controladas pela mineradora Samarco levou-nos a uma verdade desconfortável: Vale SA, uma das proprietárias da Samarco – juntamente com a BHP Billington – também financia várias ONGs ambientais no Brasil.
Como terceira maior empresa de mineração do mundo, em 2009, criou o Fundo Vale, uma associação sem fins lucrativos que “procura conectar instituições e iniciativas para o desenvolvimento sustentável”, segundo o site do Fundo Vale.
Mas este tipo de associação também levanta a questão: é um conflito de interesses para as ONGs ambientais – que têm por princípio lutar pela preservação da natureza – receber contribuições de empresas de mineração que, pela sua própria natureza, podem causar impactos negativos no meio ambiente?
De acordo com o Relatório de Atividade do Fundo Vale, entre 2009 e 2014, a organização sem fins lucrativos investiu mais de US$ 30 milhões em projetos ambientais de 25 organizações, em sete estados da Amazónia, em todo o Brasil. Desse total, 90% foram doados pela Vale S.A. e 10% pela Companhia Portuária da Baía de Sepetiba (CPBS).
Ao longo do último mês de Novembro, Mongabay contactou onze ONGs brasileiras que recebem subsídios do Fundo Vale, mas apenas duas falaram connosco: Fundação Vitória Amazônica (FVA) e Equipe de Conservação da Amazônia (Ecam). As outras ONGs contactados, e que obteram dinheiro de Fundo Vale foram Earth Institute, Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Tropical Forest Institute, Imaflora, Instituto Ambiental, Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, Vida Institute Center, Instituto de Pesquisas Ecológicas e Rede GTA.
O Earth Institute (conhecido como Instituto Terra no Brasil), fundado em 1998 pelo conhecido fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, e sua esposa Lélia Wanick, falou com a revista Época do Brasil sobre a relação com a Vale, patrocinadora do Instituto Terra desde os seus primórdios. A Vale é responsável pelo acidente, mas não operou a mina directamente, disse Salgado. “Num projeto como este, dependemos de doações”, acrescentou.
O Fundo Vale não concedeu uma entrevista a Mongabay. De acordo com sua assessoria de imprensa, “a pessoa responsável pelo Fundo Vale está em viagem e com acesso restrito ao telefone.”
Vasco van Roosmalen, diretor-executivo da Equipa de Conservação da Amazônia (Ecam), disse que vê a parceria ONG-empresas como uma condição necessária. “Nós precisamos do envolvimento de todos os setores da sociedade civil”, disse van Roosmalen. “Precisamos do governo e do setor privado para chegar a soluções duradoras para os desafios enfrentados pela nossa sociedade”.
Ecam foi criada em 2002 para trabalhar com as comunidades locais do Amazonas, Rondônia, Roraima, Amapá e Pará. Van Roosmalen disse que as empresas de mineração envolvidas na devastação da bacia do Rio Doce “terão que arcar com as consequências. Estamos a acompanhar os acontecimentos na região e esforçamo-nos para apoiar as populações afetadas, suas comunidades e ecossistemas”.
Por outro lado, van Roosmalen defende fortemente o apoio financeiro concedido pelo Fundo Vale aos projectos ECAM. “O Fundo Vale é uma iniciativa inovadora e louvável que suporta a gestão ambiental em diversos biomas brasileiros e não tem qualquer relação com as áreas operacionais da Companhia Vale”, explicou. “A sua visão de uma maior responsabilidade com a sociedade civil e do meio ambiente, que vai para além de mitigar o impacto imediato da Vale, torna o Fundo Vale numa iniciativa distinta e um exemplo para outras empresas do mundo.”
Mas muitos observadores vêm a relação entre as ONGs ambientalistas e as empresas de financiamento como um grande desafio contemporâneo. “É muito difícil para uma ONG exercer o seu lado combativo se depender do dinheiro das empresas”, argumentou Wilson Nobre, membro fundador e investigador do Fórum de Inovação da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV / EAESP). “Se você adotar uma atitude que confronta os interesses do grande capital, você irá certamente perder o seu apoio financeiro.”
Nobre sugere que o debate atual sobre o apoio do Fundo Vale às ONGs deve ser visto como uma oportunidade de reforma. “A situação de destruição do meio ambiente em que estamos agora deve motivar as ONGs a obter a maior parte dos seus recursos de pessoas físicas, e não limitarem-se a projectos que contribuam para melhorar a imagem das empresas.”
Nobre também disse, no entanto, que receber dinheiro de uma empresa que ajuda a destruir a natureza não faz necessariamente de uma ONG antiética. Se isso fosse razão suficientemente válida, ele argumentou, então porque deveria uma ONG aceitar dinheiro de uma pessoa que possui um carro, por exemplo, uma vez que ela também está a contribuir para os níveis de poluição do ar e gases de efeito estufa?
“Tanto as empresas como as pessoas estão envolvidos em actividades económicas que geram externalidades. O que torna uma ONG antiética está em não agir de acordo com os seus princípios por medo de perder o patrocínio.”
Fundada há 25 anos, a Fundação Vitória Amazônica (FVA) recebeu a maior parte do seu apoio de fundações internacionais e da União Europeia durante os seus anos anteriores. Na última década, no entanto, estes financiadores reduziram suas contribuições ou cancelaram as parcerias. Desde então, a FVA foi à procura de alternativas de captação de recursos.
“O padrão de financiamento para as ONG ambientais está a mudar no Brasil”, disse Fabiano Lopez da Silva, coordenador executivo da FVA. “As fundações internacionais estão a voltar-se para projetos em áreas que sofrem com a desflorestação, enquanto os nossos projetos estão localizados em áreas protegidas.”
Um exemplo desta tendência é encontrado na Gordon and Betty Moore Foundation baseada nos EUA. Tem patrocinando a ONG brasileira desde 2013 e é responsável por mais de 50% de sua receita. Mas a Fundação Moore anunciou que, no futuro, vai acabar com a parceria com a FVA.
“Como vão as ONGs no Brasil sobreviver se não através de fundações e empresas?”, perguntou Silva. “A única organização ambiental com independência financeira completa e uma estratégia dirigida apenas às pessoas é a Greenpeace. As suas ações e mensagens são sempre de grande impacto, por isso é mais fácil chegar às pessoas individuais. O Brasil não tem uma cultura de filantropia ou um quadro legal que incentiva esse tipo de doação.”
Em Outubro de 2013, a Fundação Vitória Amazônica assinou um contrato de cerca de $ 400.000 com o Fundo Vale para projetos de educação ambiental e de organização socioeconómica, como a expansão de uma cooperativa de produtores de castanha do Brasil na área de Rio Negro, próximo de Manaus. A Vale é atualmente responsável por cerca de 25% da receita da FVA, mas o contrato original de três anos foi reduzido em cerca de 15% no segundo ano, e terminará oito meses mais cedo do que o esperado.
Com a crescente perda de contribuições, a FVA está à procura de novas fontes de financiamento, tais como cursos ministrados em parceria com universidades estrangeiras e serviços técnicos destinados a empresas, organizações e governos locais.
“Nós podemos ser contratados para realizar estudos técnicos para avaliar a viabilidade de diferentes tipos de projetos, o que já fazemos de graça. Algumas pessoas não gostam da ideia, mas dadas as nossas dificuldades temos de recorrer a outras opções”, disse Silva.
O coordenador da FVA argumentou que os fundos provenientes de atividades de mineração não são os únicos relacionados com empresas que degradam o meio ambiente. “O dinheiro da Fundação Ford, por exemplo, vem da companhia do automóvel; Gordon e Betty Moore Foundation foi criada por um dos proprietários da Intel, fabricante de chips semicondutores; e os maiores apoiantes das ONGs da Amazónia são fundações norueguesas, cuja fonte de rendimento é o petróleo”.
Uma das razões pela qual a FVA decidiu fazer parceria com o Fundo Vale foi a de que os seus projetos não estavam nas áreas operacionais da empresa Vale, dando-lhes independência para fazer o seu trabalho. “Seria diferente se estivéssemos em Carajás ou em Vale do Rio Doce”, disse Silva, que estudou o setor de mineração latino-americana na Universidade de Columbia, nos EUA.
“As empresas de mineração em todo o mundo são altamente integradas com os seus jogadores, como a Samarco com a Vale e a BHP Billington”, acrescentou Silva. “Cada empresa tem as suas próprias normas e protocolos, não há um sistema de controlo global da indústria. E o problema agrava-se devido ao fracasso das autoridades públicas em monitorizar estas empresas”.
O Professor Wilson Nobre da Fundação Getúlio Vargas diz que as ONG ambientais no Brasil devem agora concentrar-se em ajudar a prevenir novas catástrofes, uma vez que há risco de rutura de outras barragens da Samarco. “As ONGs poderiam organizar uma auditoria, ou um estudo técnico independente, para verificar se as outras barragens têm risco de colapso.”
Correção feita às 14:00 Pacific Time: Esta história inicialmente traduziu Equipa de Conservação da Amazónia como “Team Amazon Conservation”, no entanto, a Amazon Conservation Team (ACT) é um grupo ambiental separado, não afiliados, que funciona principalmente na Colômbia e no Suriname. O ACT não recebe recursos do Fundo Vale.