Segundo um tribunal em Loreto, no Peru, a United Cacao não precisava de autorização para desmatar sua plantação perto de Tamshuyacu. Isso fecha, por enquanto, uma entre muitas questões sobre a legalidade e a sustentabilidade de empresas ligadas ao empresário de fazendas Dennis Melka.
Floresta ao longo de um braço tributário do rio Amazonas próximo ao local em que a polêmica plantação de cacau da Cacao del Peru Norte está sendo implantada. Foto:Morgan Erickson-Davis
Um tribunal regional em Loreto, no Peru, considerou legal o desmatamento de mais de 2.000 hectares de floresta pela empresa Cacao del Peru Norte, para fins de cultivo de cacau, a matéria-prima para o chocolate, como relatou o site investigativo OjoPúblico no dia 9 de abril. A decisão descarta alegações do Departamento de Manejo Florestal de que a empresa deveria ter solicitado aprovação para derrubar as árvores.
O site OjoPúblico diz também que o promotor do Ministério do Meio Ambiente planeja apelar da decisão em corte superior em Lima.
A Cacao del Peru Norte pertence à United Cacao, empresa com sede nas ilhas Cayman e com ações negociadas publicamente na Bolsa de Valores de Londres. Desde 2013, quando teve início o trabalho na fazenda de cacau perto da cidade de Tamshiyacu, o executivo-chefe da United Cacao, Dennis Melka, e outros representantes das empresas, vêm se envolvendo em discussões sobre se a plantação estava sendo desenvolvida dentro dos parâmetros legais e de acordo com – conforme o website da United Cacao – “nossa estratégia sustentável e ética de plantio”.
No Peru, as questões legais apresentam-se obscuras porque vários processos diferentes – e, às vezes, contraditórios -, regulam a proteção das florestas e o uso da terra para a agricultura. Julia Urrunaga, diretora dos programas da ONG Environmental Investigation Agency no Peru, e seus colegas, ressaltam essas ambiguidades em um abrangente relatório publicado em 7 de abril, chamado “Deforestation by Definition,” (“Desmatamento por definição”), que examina a aquisição de terras e as práticas de deflorestamento para fins agrícolas no país. O relatório também liga Melka a 25 companhias agrícolas sediadas no Peru, e os autores afirmam que essas empresas desmataram cerca de 7.000 hectares de floresta, incluindo as terras da fazenda de cacau em Loreto, além de outras usadas para plantação destinada à produção de óleo de palma na região de Ucayali.
As florestas do norte do Peru apresentam alta biodiversidade, provendo habitat para muitas espécies, dentre elas mamíferos grandes, como onças e antas, e pequenos, como estes morcegos (espécie não determinada). Foto: Morgan Erickson-Davis
Como apontam os autores, uma área pode ser legalmente classificada como sendo destinada para uso agrícola com base em “características do solo e do clima”, sem levar em conta se ela é florestada ou não. Por outro lado, a lei também protege as florestas, afirmando que elas não podem ser usadas para a agricultura.
Segundo Jośe Alvarez, diretor geral de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, essas inconsistências no manejo florestal no Peru vêm sendo exploradas por empresas fazendeiras, como aquelas dirigidas por Melka.
A companhia conseguiu derrubar as árvores “por causa de uma pequena brecha em nossas leis”, disse ele ao mongabay.com em uma entrevista. Ele acrescenta que a nova lei florestal do Peru não permitirá que isso ocorra no futuro, explicando que o desmatamento de floresta em pé perto de Tamshiyacu teria primeiramente de ser aprovada pelo Ministério do Meio Ambiente. Investidores envolvidos no negócio tiveram a oportunidade de comentar sobre a lei florestal e, assim, retirar dela os “reglamentos” que detalham como a lei funcionará na prática, incluindo, por exemplo, quem será responsável por seu cumprimento.
Também foram levantadas questões sobre a observância de outros requerimentos legais por parte da Cacao del Peru Norte. Em dezembro de 2014, o Ministério da Agricultura publicou uma resolução determinando que a companhia interrompesse toda atividade na fazenda, concedendo a ela noventa dias úteis – até o início de maio – para produzir um estudo de solo confirmando que a região tinha condições de suportar a intensificação da atividade agrícola que uma plantação de cacau ocasionaria.
No entanto, não há evidência de que o trabalho na fazenda tenha sido interrompido, ou de que a companhia tenha entregado o estudo. O mongabay.com tentou repetidamente verificar tal situação, tanto com o Ministério da Agricultura quanto com os diretores da United Cacao, mas não recebeu resposta de qualquer um deles.
O relatório da EIA (Environmental Investigation Agency) cita entrevistas com membros da comunidade local que dizem que o trabalho não parou. E o mongabay.com pôde confirmar de forma independente, por meio de suas próprias entrevistas com agricultores locais em Tamshiyacu, que as atividades na fazenda continuam desde dezembro.
Sidney Novoa e seus colegas da ACAA – Asociación para la Conservación de la Cuenca Amazónica -, bem como sua organização-irmã baseada nos Estados Unidos, a Amazon Conservation Association (ACA), demonstraram que os trabalhadores continuaram a derrubar a vegetação e criar corredores através da floresta intacta remanescente na área da Cacao del Peru Norte durante o período. Segundo Matt Finer, ecologista da ACA, a criação desses corredores é frequentemente sucedida por desmatamento.
Novoa enviou ao Ministério da Agricultura, no início de abril, um relatório técnico com imagens de satélite sequenciais mostrando que a companhia não parou suas atividades entre 21 de dezembro de 2014 e 3 de março de 2015, como havia sido determinado na resolução.
Novoa e Finer, em conjunto com Clinton Jenkins, do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Brasil), usaram análises de satélite que mostram que os 2.100 hectares iniciais desmatados pela empresa eram quase totalmente (98%) cobertos por floresta tropical fechada. Dados inedependentes do Global Forest Watch mostram uma área desmatada no formato da fazenda da Cacao del Peru Norte, e que a floresta na região apresentava densidade de copa maior do que 75%, o mais alto nível de cobertura florestal disponível naquele conjunto de dados.
Dados sobre alterações florestais do Global Forest Watch mostram a perda de cobertura florestal na plantação da Cacao del Peru Norte que ocorreu de 2001 a 2013, e que corresponde ao formato dos próprios mapas da fazenda da empresa. Como confirmam os dados de satélite da Amazon Conservation Association, a região da plantação anteriormente apresentava floresta tropical densa. Clique sobre a imagem para vê-la ampliada.
Os alertas FORMA são áreas de 500 x 500 metros quadrados com provável desmatamento. O Global Forest Watch mostra muitos alertas FORMA ocorreram na região da fazenda da United Cacao entre dezembro de 2014 e março de 2015. A área também apresenta degradação significativa de paisagens florestais intactas (IFLs, na sigla em inglês) desde 2000. As IFLs são regiões de floresta suficientemente extensas e distantes da atividade humana para manter seus níveis originais de biodiversidade. Clique sobre a imagem para vê-la ampliada.
Imagens da plantação da United Cacao capturadas e analisadas mostram a extensão do desmatamento (em vermelho) em dezembro de 2014. Note que a imagem está parcialmente bloquada por nuvens. Crédito: Matt Finer, da Amazon Conservation Association; Sidney Novoa, da Asociación para la Conservación de la Cuenca Amazónica; Clinton Jenkins, do Instituto de Pesquisas Ecológicas.
Em abril, muitas novas partes da fazenda mostravam sinais de desmatamento. Crédito: Matt Finer, da Amazon Conservation Association; Sidney Novoa, da Asociación para la Conservación de la Cuenca Amazónica; Clinton Jenkins, do Instituto de Pesquisas Ecológicas.
Cerca de uma semana antes da publicação do relatório do EIA, Melka desqualificou a preocupação das ONGs sobre o desmatamento relacionado a plantações extrativistas chamando-a de “neocolonialista”, durante entrevista com o site de investimentos DirectorsTalk. Melka disse que as acusações “espalhadas” sobre destruição de florestas tropicais eram desrespeitosas à soberania nacional do Peru e seu direito de determinar o que fazer com suas próprias terras.
No entanto, segundo Daniela Pogliani, diretora executiva da ACCA com base em Lima, as revelações da ACCA e da ACA baseiam-se em dados, não em emoção. “Queremos poder aplicar nosso conhecimento para gerar informação de qualidade, científica e factual” que os tomadores de decisões possam usar para tomar decisões bem informadas, diz ela. “A princípio, não somos contra o óleo de palma ou as fazendas de cacau. Mas, sim, somos contra eles quando estão em nossas florestas primárias”.
Pogliani diz que esse tipo de empreendimento deveria ser desenvolvido em terras degradadas. O argumento de Melka na entrevista ao DirectorsTalk foi o de que fazendas frequentemente usam áreas degradadas. Ao deparar com uma pergunta do apresentador sobre a questão espinhosa do desmatamento para a implantação das fazendas, ele não mencionou especificamente a fazenda de Tamshiyacu.
“Acho importante notar que, quando as companhias fazendeiras chegam a uma região, ela já foi usada para extração de madeira ou teve toda a sua vegetação de madeira nobre tropical derrubada”, diz Melka. “Não se trata de floresta tropical. Trata-se de floresta secundária. É uma área altamente degradada”.
De acordo com Bill Laurance, ecologista tropical da James Cook University em Cairns, Austrália, é errôneo caracterizar a área da fazenda de Tamshiyacu como tendo valor apenas para fins agrícolas.
“A ideia de que se trata apenas de terra degradada e sem valor é uma proposta simplesmente risível”, diz. Ele argumenta que muitas florestas tropicais ainda são muito importantes do ponto de vista da conservação, a despeito de a atividade madeireira representar um tipo de uso de terra “dominante” nos trópicos. “Em boa parte do mundo tropical , a atividade madeireira usou corte seletivo de madeira”.
Um grilo surge da serapilheira perto de Iquitos, Peru. Foto: Morgan Erickson-Davis.
Laurance aponta um estudo que ele e seus colegas publicaram na revista Nature em 2011. Eles descobriram que mesmo florestas que sofreram derrubada de espécies valiosas de madeira nobre, como ocorreu em grandes partes da Amazônia, apresentam biodiversidade, armazenamento de carbono e recursos hídricos muito próximos daquilo que seria encontrado em uma floresta primária do que o que se pode encontrar em plantações monoculturais, como a de palma para produção de óleo.
“Biologicamente, essas áreas tendem a ser desertos em comparação a florestas que sofreram corte seletivo ou a florestas primárias”, acrescenta Laurance.
Entretanto, Laurace, que não esteve envolvido na análise dos dados de satélite, disse que, no caso da fazenda da United Cacao perto de Tamshiyacu, há pouca dúvida de que a região apresentava floresta densa antes de a companhia lá se estabelecer.
Além disso, a afirmação de que a área consisita em grande parte de floresta tropical madura é corroborada por dados gerados com tecnologia LiDAR (detecção remota a laser) analisados por Greg Asner, ecologista do Carnegie Institution for Science da Universidade de Stanford, para determinar as quantidades de carbono presentes nas florestas antes de serem cortadas. Asner disse ao mongabay.com, em janeiro, que a análise feita por sua equipe revelou que essas florestas apresentavam algumas das maiores quantidades de carbono no Peru.
Embora não tenha visto a área pessoalmente, Laurance considera os dados LiDAR de Asner particularmente convincentes. “Eles sugerem que, se você tem muitas árvores enormes no local”, diz ele, “se lá há um monte de árvores grandes, então trata-se de algo próximo a uma floresta em fase madura”.
Leia mais sobre essa história em capítulos:
(20 Jan.) Empresa derruba floresta tropical para produzir chocolate “sustentável”
(06 Feb.) Cientistas avisam investidores sobre a destruição florestal causada por companhia cacaueira no Peru
(12 Feb.) Empresa de cacau “sustentável” alegadamente desafia ordem do governo para que interrompa implantação de fazenda
Citações:
Greenpeace, University of Maryland, World Resources Institute and Transparent World. 2014. Intact Forest Landscapes: update and reduction in extent from 2000-2013. Accessed through Global Forest Watch on April 16, 2015. www.globalforestwatch.org
Hammer, Dan, Robin Kraft, and David Wheeler. 2013. “FORMA Alerts.” World Resources Institute and Center for Global Development. Accessed through Global Forest Watch on April 16, 2015. www.globalforestwatch.org.
Hansen, M. C., P. V. Potapov, R. Moore, M. Hancher, S. A. Turubanova, A. Tyukavina, D. Thau, S. V. Stehman, S. J. Goetz, T. R. Loveland, A. Kommareddy, A. Egorov, L. Chini, C. O. Justice, and J. R. G. Townshend. 2013. Hansen/UMD/Google/USGS/NASA Tree Cover Loss and Gain Area.” University of Maryland, Google, USGS, and NASA. Accessed through Global Forest Watch on 11 April 2015. www.globalforestwatch.org