No que parece ser corrupção em altas esferas, o órgão international encarregado de proteger espécies ameaçadas vem fazendo vista grossa para o comércio ilegal de grandes símios. Essa foi minha nítida impressão ao ler o relatório Great Apes elaborado pelo Secretariado da CITES (Convention on International Trade in Endangered Species – Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção) para a 65a reunião de seu Comitê Permanente, que ocorrerá em Genebra no começo de julho deste ano.
A CITES é responsável por regular o comércio de animais e plantas selvagens, bem como seus derivados, a fim de protegê-los contra a exploração excessiva. Um comércio muito intenso pode ameaçar de extinção uma espécie, como aconteceu recentemente com o rinoceronte negro africano, que foi caçado até a extinção por causa do comércio ilegal de seus chifres.
Aproximadamente 22.200 grandes símios foram perdidos em incidentes relacionados ao tráfico de animais. O relatório estima que, a cada ano, aproximadamente 5% de todos os grandes símios da Terra sejam perdidos por causa do tráfico. A CITES busca manter os símios ameaçados em seu ambiente natural. Foto: cortesia de Karl Ammann
O Comitê Permanente é uma estrutura importante no funcionamento da CITES. Ele “… fornece orientação política ao Secretariado em relação à implementação da Convenção e supervisiona a administração de seu orçamento. Além disso, coordena e supervisiona (…) o trabalho de outros comitês e grupos de trabalho, esboça resoluções para a apreciação da Conferência das Partes e executa tarefas a ele delegadas pela Conferência das Partes”.
O Comitê Permanente também dá início a ações para aplicar sanção, por meio da suspensão do comércio, a Partes (ou seja, países signatários) que desrespeitem abertamente as regras da Convenção.
Os grandes símios – chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos – estão listados no Apêndice I da CITES justamente por estarem ameaçados de extinção. A CITES não permite que eles sejam comercializados, e qualquer operação de exportação para outros propósitos (como, por exemplo, pesquisa científica, fins educacionais etc.) é rigorosamente controlada.
Traficantes de símios querem apenas animais jovens, ques são mais facilmente controlaáveis e podem ser treinados. Foto: cortesia de Karl Ammann.
Se a CITES tencionasse fosse tomar qualquer ação contra o comércio ilegal de grandes símios, deveria começar nessa reunião. No entanto, o relatório do Secretariado diz: “O Secretariado participou de um painel sobre comércio ilegal de grandes símios no simpósio [de Jackson Hole] e destacou o fato de que, embora o tráfico de grandes símios exista em certa medida, dados de fontes oficiais sugerem que o comércio internacional de espécimes de grandes símios encontra-se limitado atualmente”. Mais adiante no relatório, o Secretariado afirma que “… o comércio ilegal internacional de espécimes de grandes símios é muito restrito”.
As palavras-chave nessa afirmação são “dados de fontes oficiais”, que aparentemente consistem do banco de dados sobre comércio da própria CITES, e de relatórios compilados pela INTERPOL e pelo World Customs Union. “Fontes oficiais” aparentemente não incluem a Great Apes Survival Partnership (GRASP) – Parceria para a Sobrevivência dos Grandes Símios, em inglês), organização que atua junto à CITES dentro do programa ambiental da ONU, e que é responsável pela conservação dos grandes símios. Na última Conferência das Partes da CITES, ocorrida em Bangkok em março de 2013, a GRASP publicou um relatório intitulado Stolen Apes. Esse relatório aponta que, entre 2005 e 2011, aproximadamente 22.200 grandes símios foram perdidos em incidentes relacionados ao tráfico. De acordo com ele, estima-se que, a cada ano, aproximadamente 5% da população total de grandes símios na Terra sejam perdidos por causa do tráfico. Seria isso realmente “limitado” e “muito restrito”?
A situação não melhorou desde então. Em junho deste ano, a GRASP publicou uma declaração à imprensa afirmando que “o comércio ilegal de chimpanzés, gorilas, bonobos e orangotangos não mostra sinais de estar diminuindo – e pode, na verdade, estar piorando”.
Seria o Secretariado da CITES capaz de rebater esses resultados?
Karl Ammann e colaboradores descobriram e documentaram atividades de várias redes de tráfico de grandes símios que se estendem por muitos países na África, no Oriente Médio, na Rússia e no leste da Ásia. A maior parte do tráfico de símios envolve, de um lado, oficiais corruptos na África que vendem permissões de exportação falsas e, na ponta importadora, oficiais da CITES ineptos ou coniventes.
Karl e investigadores colaboradores, disfarçados de traficantes de animais selvagens, visitaram vários países da África, leste da Ásia e Ásia central. Com câmeras escondidas, gravaram conversas que detalhavam como os grandes símios são capturados, negociados e vendidos. Karl obteve gravações de conversas em que oficiais da CITES admitem cometer fraudes e, fingindo ser um traficante de animais indonésio na Internet, conseguiu permissões falsas de exportação.
Grandes símios são muito procurados para atuar em parques de diversão e safáris, e também para atrair espectadores a zoológicos particulares e aumentar o prestígio de potentados dos negócios em suas coleções particulares de animais selvagens. Os principais países importadores desses animais estão localizados no leste da Ásia, no Oriente Médio e na antiga União Soviética.
Estes órfãos traficados da Guiné terminaram em parques de diversão na China, sendo treinados para divertir o público pagante. Foto: cortesia de Karl Ammann.
Aparentemente, o Secretariado da CITES está tentando varrer para debaixo do tapete a real extensão do tráfico de grandes símios, no intuito de evitar as árduas e custosas ações que seriam necessárias para acabar com as práticas corruptas em vários escritórios nacionais da Convenção.
A maior dor de cabeça seria o escritório da China. Nos últimos dois anos, trabalhei próximo a Karl Ammann a fim de desenredar a complexa trilha de evidências contidas em vários relatórios e no banco de dados sobre comércio da CITES, bem com em e-mails trocados com o Secretariado da CITES e o escritório da CITES na China. Concluímos que a China foi cúmplice na tentativa de usar permissões falsas de exportação da Guiné para importar mais de cem chimpanzés e dez gorilas desde 2007. Graças em grande parte aos esforços de Ammann, a CITES puniu a Guiné com a suspensão do comércio em 2013. No entanto, nenhuma ação foi tomada contra a China, em uma atitude comparável a penalizar o traficante de armas mas deixar o receptador impune.
Apesar da sanção contra a Guiné, evidências reunidas por Ammann mostram que traficantes de animais selvagens no país continuam a anunciar para venda espécies do Apêndice I – incluindo grandes símios – usando permissões de exportação da CITES, e de que a China continua a importar grandes símios.
O Comitê Permanente da CITES tem 32 países (Partes) membros. Será que ao menos um deles irá questionar esse relatório tendencioso e autoindulgente e iniciar uma ação séria para deter o comércio ilegal de grandes símios?