UMA ENTREVISTA COM SCOTT WALLACE, AUTOR DO LIVRO “THE UNCONQUERED”
O mundo está mais interligado do que nunca. Globalmente, há seis mil milhões de assinantes de telemóveis e mil milhões de utilizadores de Facebook. Lady Gaga tem cerca de 32 milhões de seguidores no Twitter. Neste contexto, pode parecer difícil de acreditar que continuam a existir pessoas que nunca tiveram contacto com o mundo exterior. E no entanto existem, ainda hoje. A maioria delas vive nas zonas mais remotas das mais selvagens florestas do mundo.
Um dos melhores livros de capa mole deste ano lança um olhar de perto sobre um grupo incontactado — os índios flecheiros da Amazónia brasileira. Escrito pelo jornalista veterano Scott Wallace, The Unconquered: In Search of the Amazon’s Last Uncontacted Tribes (que pode ser traduzido por “Os não conquistados: em busca das últimas tribos não contactadas da Amazónia” é um envolvente relato na primeira pessoa de uma viagem à descoberta desta tribo pouco conhecida. A história de Wallace é de aventura, recheada de perigo, intriga e um notável elenco de personagens, das quais a mais memorável é Sidney Possuelo, líder da expedição e um Indiana Jones da vida real. Enquanto “agente de contacto” para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Possuelo era o responsável por determinar as acções a desenvolver com as tribos isoladas ao longo da Amazónia.
Desde a sua edição em 2011, The Unconquered tem sido amplamente reconhecido. Acaba de entrar no Top 10 de Literatura de Viagem de 2012 da Booklist, e recentemente a Sociedade Americana de Escritores de Viagem agraciou-o com um prémio Lowell Thomas. Wallace também acaba de receber um prémio Lowell Thomas da associação norte-americana Explorer’s Club (Clube de Exploradores), pelo seu trabalho na Amazónia.
Em Dezembro de 2012, Wallace respondeu a algumas questões do mongabay.com sobre o livro, o seu percurso profissional, e também as tribos incontactadas da Amazónia e o que se segue.
MONGABAY Q&A COM SCOTT WALLACE, AUTOR DO LIVRO “THE UNCONQUERED: IN SEARCH OF THE AMAZON’S LAST UNCONTACTED TRIBES”
Mongabay.com: O que desencadeou o seu interesse em tornar-se jornalista? E porquê a Amazónia?
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Scott Wallace: Tudo começou há muito tempo, quando tirei um ano de folga da faculdade. Primeiro fui para o México estudar espanhol, no Verão, depois continuei por terra em direcção ao Peru, onde me tinha inscrito como voluntário para aulas de alfabetização numa comunidade indígena na selva. Isso acabou por ser uma experiência fundamental. Nos anos seguintes, fiquei cada vez mais interessado no que estava a acontecer na América Latina. Decidi tornar-me jornalista para cobrir a América Latina, porque melhor se aproximava da minha paixão por viagens, aventura, fotografia e contar histórias. Depois de terminar os estudos de jornalismo em 1983, fui directamente para El Salvador e ingressei na profissão com um baptismo de fogo, pode-se dizer. Passei sete anos em El Salvador, Nicarágua, Guatemala e Panamá, a cobrir o levantamento dos anos 80 que culminou com o fim da guerra dos “Contras” na Nicarágua e a invasão do Panamá pelos EUA.
Por fim, acabei por voltar à Amazónia. No princípio dos anos 90, tinha-me tornado cada vez mais interessado no ambiente e na luta pela terra e pelos recursos nas fronteiras remotas do planeta. Aquela anterior experiência na selva peruana tinha permanecido comigo e chamava-me de volta. Havia algo na absoluta crueza do lugar, na sua qualidade selvagem inspiradora de espanto e terror, que me atraía. E os acontecimentos que se passam lá agora são de uma importância crítica para todos nós, para a sobrevivência do planeta. É portanto um lugar que testa as minhas capacidades e onde as minhas experiências prévias e o meu conhecimento acumulado me permitem movimentar e actuar com alguma competência.
Mongabay.com: Qual tem sido a resposta ao livro? Algumas grandes surpresas?
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Scott Wallace: Tenho ido falar a universidades, com associações cívicas e com directores e doadores de organizações sem fins lucrativos, e o nível de envolvimento que as pessoas têm com este tema das tribos incontactadas tem sido esmagador. Penso que existe uma coisa que inflama a imaginação e levanta o astral de todos para ouvir a mensagem das tribos incontactadas – é que ainda existem pessoas que escolheram um caminho diferente do resto de nós, que ainda há populações e comunidades que mantêm uma ligação profunda a um passado remoto do qual todos viemos.
Mongabay.com: Quais foram os maiores desafios na sua procura pelas evidências da presença dos índios flecheiros?
Scott Wallace: O maior desafio de todos talvez tenha sido simplesmente aceder a este território quase impenetrável em que os índios flecheiros se mantêm. Quase todas as tribos isoladas da Amazónia que restam, incluindo os índios flecheiros, retiraram-se para os redutos mais inacessíveis da floresta tropical. Estamos a falar de uma área de cabeceiras de rio muito acidentadas e densamente arborizadas. Na verdade existem perigos a cada passo, desde árvores espinhosas que podem empalar um olho num momento de descuido, até uma panóplia de serpentes altamente venenosas – surucucus (Lachesis), jararacas (Bothrops), cobras-coral. Tivemos de atravessar dezenas de rios e ribeiros, por vezes através de longas e escorregadias pontes feitas de troncos, que exigiam o máximo de concentração. Escorregar num desses troncos poderia resultar em ferimentos graves, e numa floresta de copas densas a evacuação não é uma opção.
Para além desses perigos, o outro desafio principal foi reunir informação sobre um povo que não queríamos realmente encontrar. Entrámos no território dos índios flecheiros para reunir informação sobre o alcance das suas andanças – observando e documentando as zonas de pesca abandonadas, as rotas de migração, os artefactos que iam deixando pelas suas andanças anuais pela floresta. Mas uma tarefa destas implicava sempre o risco de um encontro violento nas profundezas da selva. Era uma estranha e perigosa dança – procurar os índios flecheiros enquanto os tentávamos evitar.
Mongabay.com: A área em que entraram é uma das mais remotas da Amazónia (e portanto do mundo). O que nos pode dizer sobre entrar num lugar tão longe da civilização? Algumas aventuras que queira partilhar?
Scott Wallace: Tive a felicidade de estar na companhia de um grande contingente de batedores indígenas e interioranos para entrar na Amazónia remota. É tão selvagem, tão remota, e tudo é numa escala tão grandiosa que a experiência é verdadeiramente uma lição de humildade – e também assustadora. Na sociedade moderna urbana estamos tão habituados a ter o que queremos ao carregar de um botão. Bem, a vida não costumava ser assim durante 99 por cento da nossa história, e ainda não é assim na Amazónia. Tudo exige esforço, desde encontrar a próxima refeição até garantir que o próximo passo não te vai enfiar num buraco torce-tornozelos ou em cima de uma cobra mortífera. Os povos indígenas que lá vivem desenvolveram uma forma de vida e uma cultura que lhes permite movimentarem-se com facilidade por um lugar que para nós é estranho e aterrador. As constantes enxurradas, a lama, a humidade constante e enxames enlouquecedores de insectos não os incomodam nem um pouco. Estaríamos completamente perdidos sem eles.
Mongabay.com: Sydney Possuelo parece ser uma personagem fascinante. O que acha que o motiva?
Scott Wallace: Sydney Possuelo era o líder da nossa expedição, a personagem principal do livro The Unconquered e o fundador do Departamento de Índios Isolados, organismo de nome curioso dentro da FUNAI, a agência nacional brasileira para as questões indígenas. Possuelo é um daqueles raros indivíduos que acredita absolutamente no que está a fazer e está disposto a fazer qualquer coisa para o conseguir. É um idealista que foi capaz, quase sozinho, de virar a orientação das políticas do governo do Brasil para os seus povos indígenas em geral, e para os seus grupos indígenas isolados e incontactados em particular. Demonstra uma obstinação que achei tão admirável quanto desconcertante. Penso que ele é verdadeiramente motivado por um profundo impulso humanitário para defender o desfavorecido, para proteger e dar voz a alguns dos povos mais marginalizados da Terra.
Mongabay.com: Existe um sentimento em alguns círculos no Brasil que já foram atribuídos demasiado territórios às populações indígenas (há uma expressão qualquer coisa como “muita terra, pouco índio”). Encontrou muitas vezes esse argumento durante a sua investigação ou experiências no terreno? Quem costuma ter essa opinião? Que argumentos apresentam?
Scott Wallace: Colocar as terras indígenas fora do alcance dos madeireiros, ocupantes, prospectores mineiros e especuladores fundiários é uma política muito impopular na fronteira. Confrontados com a discriminação generalizada e o desprezo dos colonizadores ricos e pobres ao longo da fronteira, os povos indígenas formaram nos últimos anos alianças com ONG estrangeiras para defenderem as suas terras e os seus direitos. Por sua vez, isto veio fortalecer os argumentos defendidos, bastante cinicamente, pelos industriais poderosos e pelos seus lacaios políticos, que uma conspiração de interesses estrangeiros está a tentar “internacionalizar” a Amazónia e tomar os seus recursos.
Mongabay.com: Desde que fez a sua viagem pela floresta, tem havido um forte impulso para aligeirar algumas das protecções do Brasil à Amazónia e aos territórios indígenas. Por exemplo, os ruralistas no congresso brasileiro exerceram pressões para enfraquecer o Código Florestal e preparam-se agora para conceder a interesses como os das empresas mineiras e de construção o direito de operar em territórios indígenas. Pensa que as ameaças às terras indígenas no Brasil irão aumentar no futuro ou a situação está a estabilizar para as tribos incontactadas no Brasil, especialmente no contexto do que está a acontecer em locais como o Perú e o Paraguai?
Scott Wallace: As ameaças às terras indígenas no Brasil e em outras zonas da Amazónia continuam a aumentar. Embora o Brasil mantenha uma política esclarecida em relação aos povos incontactados e isolados da Amazónia, as políticas macroeconómicas seguidas pelo governo de Dilma Rousseff constituem um grande desafio e uma ameaça. Essencialmente, ela apostou tudo no investimento em projectos enormes de mega-construções na Amazónia, como a controversa barragem de Belo Monte. Existem vários outros grandes projectos hidroeléctricos em construção na Amazónia. Todos juntos, ameaçam transformar a região, atraindo migrações de outras partes do Brasil, sobrecarregando os recursos e devorando a terra. Não estou optimista.
Mongabay.com: Será o contacto inevitável para estas tribos, isto é, uma questão de tempo na nossa corrida pelos recursos mundiais que restam? Será realmente possível nos dias que correm que estas tribos permaneçam intocadas pelo mundo moderno?
Scott Wallace: Gostaria de pensar que podemos encontrar uma forma de proteger pelo menos alguns dos últimos grandes lugares selvagens do mundo, incluindo as pessoas que optam por habitá-los, isoladas do resto de nós. Mas a nossa ganância e cobiça parecem não conhecer limites. Com os nossos instintos mais básicos à solta, dominaremos até ao último pedaço de floresta intacta para chegar aos recursos que abriga. Claramente a única forma para que estas regiões sejam protegidas – e que seja respeitada a auto-determinação dos povos que lá vivem – é manter uma vigilância constante e determinada. Devem ser aprovadas leis que protejam as tribos isoladas. Onde estas leis já existirem, devemos insistir na sua aplicação vigorosa. Apenas através do Estado de direito podemos proteger com sucesso estas terras e as pessoas que vivem nelas.
Mongabay.com: Se a doença não fosse uma preocupação, algumas pessoas poderiam argumentar que contactar uma tribo destas acabaria por lhes trazer grandes benefícios, ou seja, melhores padrões de vida, cuidados e saúde modernos. Como responde a isso?
Photos of an uncontacted tribe in the Terra Indigena Kampa e Isolados do Envira, Acre state, Brazil, near the border with Peru, caused a stir when they were released by Survival International, an NGO, in May 2008. The indigenous group is said to be threatened by oil exploration in the area. © Gleison Miranda/FUNAI. |
Scott Wallace: Vezes sem conta, já vimos o oposto. Na nossa arrogância, assumimos que o que temos é melhor do que aquilo que estas culturas antigas já têm. Naturalmente, é melhor para nós. Mas será que é realmente melhor para eles? As pessoas que têm selva intacta, cujos rios estão limpos e repletos de peixe, cujas florestas estão ilesas e cheias de animais, têm tudo o que precisam. Têm saúde e um sentido de propósito e de comunidade. Podem existir com uma pequena fracção dos recursos que consumimos, mas isso não significa que estejam piores que nós ou sequer que são empobrecidos.
Mas a pergunta também pressupõe que estes grupos receberiam de alguma forma os benefícios que a sociedade reserva para as classes privilegiadas. Quantas pessoas na Índia ou na Serra Leoa recebem os benefícios da civilização moderna? Quantos grupos tribais na Amazónia realmente beneficiaram com os cuidados de saúde modernos? O triste facto é que, quando estes grupos são contactados, depressa acabam por ocupar os degraus mais baixos da nossa sociedade, marginalizados e desprezados. Acredito verdadeiramente que estão melhores sem nós. Possuelo também acredita.
Mongabay.com: O que ameaça esta tribo em particular?
Scott Wallace: Os índios flecheiros não enfrentam nenhuma ameaça directa nesta altura. Têm a sorte de habitar uma das áreas mais protegidas de toda a Amazónia. Mas as suas terras são potencialmente vulneráveis às incursões de madeireiros e caçadores furtivos. Basta apenas um encontro e algumas casualidades para impulsionar uma escalada de acontecimentos que pode levar a um ataque genocida bem organizado que dizime uma aldeia inteira. Temos uma abundância de exemplos da nossa própria história na América do Norte para saber que este tem de ser um perigo constante para cada tribo incontactada que ainda existe hoje na Amazónia.
Mongabay.com: Quantas tribos incontactadas existem ainda no mundo?
Scott Wallace: Não sabemos ao certo. Existem dois grupos indígenas incontactados que persistem nas Ilhas Andamão, no Oceano Índico. Pode existir ainda um ou dois grupos na Nova Guiné, mas provavelmente não. Na verdade, a Amazónia é o último lugar na Terra onde há uma abundância destes grupos. Temos conhecimento de perto de 30 no Brasil e podem ser mais, 15 no Peru, dois grupos no Equador, dois na Bolívia, uma mão-cheia na Colômbia e talvez a um último grupo de isolados Yanomami na Venezuela. Portanto, globalmente existirão uns 60-70 grupos.
Mongabay.com: Falou com tribos contactadas sobre os seus sentimentos em relação às tribos incontactadas?
Scott Wallace: A atitude das tribos contactadas perante os seus irmãos incontactados é curiosa. Em alguns casos, olham com desdém para os grupos incontactados. Talvez por terem interiorizado a mentalidade dos seus opressores, vêem os grupos incontactados como selvagens, indomáveis, primitivos. Mas em outros casos, as tribos contactadas reverenciam as incontactadas. No Equador, por exemplo, ainda existem vários clãs de Waorani que permanecem incontactados, vagueando pelas florestas como nómadas. Os seus parentes contactados retiram um sentido de identidade tribal e resistência dos irmãos incontactados. Vêem-se a si próprios como protectores dos grupos incontactados. Penso que a sua identidade tribal e o seu astral iriam sofrer um terrível golpe se forasteiros forçassem o contacto com os seus parentes esquivos. Portanto depende muito de que grupos estamos a falar.
As pessoas nas cidades não fazem ideia que ainda há grupos incontactados na floresta.
Mongabay.com: Os estudos têm demonstrado que as terras indígenas mantêm melhor a cobertura florestal do que algumas áreas de conservação no Brasil. Vê alguma hipótese das tribos beneficiarem de fundos de conservação, quer directamente como “guardas de conservação”, quer indirectamente, com o argumento de que aquela terra da tribo incontactada fornece um certo valor acrescentado à humanidade?
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Scott Wallace: É um argumento a favor da protecção das terras das tribos incontactadas. Por causa da sua missão de proteger as tribos incontactadas do Brasil, o Departamento de Índios Isolados está a proteger 130 mil km2 de floresta intacta. É uma área do tamanho do Estado de Nova Iorque. A política de protecção às tribos incontactadas é o ponto de encontro entre a causa dos direitos humanos e a causa da conservação ambiental. A única forma de proteger estes grupos isolados é protegendo as florestas tropicais em que eles vivem.
Mongabay.com: Algumas sugestões para aspirantes a jornalistas?
Scott Wallace: Sigam os vossos sonhos e as vossas paixões. Estudem História, Inglês e Línguas. Abram o vosso coração ao mundo e partam à descoberta dele.