Demanda internacional por manganês ameaça indígenas Kayapó no Pará

Um ano que valeu por 40

O volume de requerimentos de manganês incidentes em terras indígenas protocolados no ano passado é tão elevado que quase se iguala ao acumulado entre 1980 e 2019. Foram 21 pedidos feitos em 2020 que, somados ao único requerimento registrado até 4 de junho de 2021, fazem da recém-iniciada década a recordista em relação às anteriores, mesmo com apenas 17 meses desde seu início.

Na verdade, os pedidos protocolados em 2020 chegaram a superar o total de requerimentos feitos desde os anos 80, porque ao todo foram 38 solicitações para minerar manganês abertas na ANM, no ano passado. Mas entre setembro do ano passado e junho de 2021, 17 desses pedidos acabaram indeferidos pela agência por estarem em conflito com TIs. Outros dois pedidos tiveram suas áreas originais retificadas recentemente e agora são apenas vizinhos dos indígenas.

O indeferimento de pedidos de mineração sobrepostos a terras indígenas atende uma orientação do Ministério Público Federal. A procuradoria tem movido ações judiciais solicitando a derrubada desses requerimentos enquanto não houver uma lei específica que regulamente a mineração em terras indígenas – e tem conseguido vitórias. “Seguindo essa lógica, três requerimentos protocolados em 2021 também foram indeferidos pela ANM.”.

Apesar disso, ainda prevalece no órgão regulador a tese de que os pedidos não podem ser rejeitados assim que entram no sistema.

“Na época da Constituinte, o ministro de Minas e Energia, Aureliano Chaves, estabeleceu um procedimento anômalo para estes pedidos sobre terras indígenas que se mantém até hoje. Se eles aparecem no sistema do governo, não são rejeitados nem autorizados, ficam como a Branca de Neve esperando o beijo do príncipe para acordar. Esse beijo é a lei regulamentadora”, explica Marcio Santilli, fundador do Instituto Socioambiental que participou dos debates na época da elaboração da carta magna brasileira.

Apesar disso, o projeto Amazônia Minada já mostrou casos em que há interferência sobre terras indígenas e mesmo assim houve autorização de pesquisa concedida pela agência. Em fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro apresentou um projeto de lei para regulamentar a atividade – e que poderia ser o “beijo do príncipe” que as mineradoras aguardam. “Muitas tentativas já foram feitas, mas esta é a pior que já vi porque não respeita as regras estabelecidas pela Constituição para minerar essas áreas protegidas”, aponta Santilli.

Recordista de solicitações em TIs vira alvo da Polícia Federal

Dezesseis dos 17 pedidos protocolados em 2020 e indeferidos pela ANM foram feitos em nome de uma mesma empresa, a Patium Beneficiamento de Minério e incidiam diretamente sobre a TI Kayapó. Além das requisições derrubadas, a Patium mantém ativas outras 17 solicitações para extrair manganês sobrepostas às TIs Kayapó (11), Badjonkore (3) e Las Casas (3) – todas do povo Kayapó. É, de longe, a empresa mais interessada neste minério dentro de áreas protegidas em muito tempo.

Quando protocolou os requerimentos, no passado, a Patium fazia parte de um conglomerado de 12 CNPJs ligados à mineração do empresário Samuel Borges, cuja principal marca é a RMB S.A. – sigla para Recursos Minerais do Brasil, uma das poucas companhias autorizadas a explorar manganês na província mineral de Carajás, o melhor depósito da substância no país e um dos mais puros do mundo.

A Patium foi vendida no início de 2021, mas outras três empresas de Borges também possuem pedidos para explorar minérios dentro de áreas indígenas, incluindo a RMB S.A.

E embora a ANM garanta que “não concede alvarás ou qualquer permissão em terra indígena” e que “pode haver requerimento, porém não prosperará após análise”, duas solicitações protocoladas em 2017 pela RMB Manganês incidentes sobre a TI Las Casas tiveram autorização de pesquisa emitida – contrariando frontalmente o que a agência disse à reportagem. Uma delas é de exploração de manganês, a outra, de cobre.

A companhia se defende dizendo que os alvarás concedidos “não estão localizados dentro de terra indígena, mas sim, nas proximidades limítrofes”. Mas os mapas gerados pelo Amazônia Minada utilizam dados públicos contidos no próprio sistema da ANM para encontrar esses pontos de intersecção com áreas protegidas e são capazes de detectar mesmo interferências mínimas.

Através de sua assessoria de imprensa, o grupo revelou que estava abrindo mão dos requerimentos de mineração em TIs já protocolados em nome das empresas que o compõem. “Entendemos que a regulamentação dessa matéria requer uma longa discussão no Congresso Nacional, e que no momento não seria viável manter esses requerimentos no portfólio”, diz. Na ANM, entretanto, todos seguem vigentes.

Em 2020, outro fato envolvendo a RMB Manganês chamou atenção das autoridades. A Polícia Federal e a ANM encontraram 81,1 mil toneladas de manganês “com indícios de ilicitude” em depósitos da empresa no porto de Barcarena e na sede da empresa, em Curionópolis. Foi a segunda maior quantidade de manganês apreendida no ano passado pelos órgãos públicos, quase um terço do volume total de apreensões informado à reportagem, 305 mil toneladas.

Além dos problemas com a polícia, a companhia deve R$ 8,9 milhões à União, decorrentes da falta de pagamento de tributos e da contribuição previdenciária de seus empregados. Outra empresa do grupo, a AllMineral Ltda tem dívidas públicas menores, que chegam a R$ 120 mil. O CEO do grupo, Samuel Borges, possui ele mesmo débitos tributários no valor de R$ 55 mil – e está inscrito na Dívida Ativa da União, embora o capital social de suas empresas some mais de R$ 6 milhões, de acordo com a Receita Federal.

O conglomerado diz que renegociou parte das dívidas com o fisco, mas discute judicialmente um montante (não informado) sobre o qual rejeita cobrança. “Por fim, o Grupo RMB ressalta que não participa ou pactua de quaisquer atos ilícitos. Pautando seu trabalho por práticas sustentáveis e regras de compliance e governança cooperativa, visando não apenas retorno aos acionistas, mas o desenvolvimento sustentável, emprego e renda para as regiões onde atua”, informa a nota, cuja íntegra pode ser lida aqui.

Um novo conflito entre a Vale e os Xikrin

Entre os 53 pedidos para minerar manganês em terras indígenas levantados pelo projeto Amazônia Minada, oito tiveram título de pesquisa emitidos pela ANM – contrariando o compromisso da agência de não autorizar exploração mineral em áreas demarcadas. Nesta etapa do processo, já é permitida a extração de amostras dos minérios ainda que apenas para pesquisa.

Um desses pedidos com autorização de pesquisa emitida chama a atenção porque teve andamento mais de 30 anos após ser protocolado e pode representar o acirramento de um conflito entre os indígenas Xikrin, uma das subdivisões do povo Kayapó de acordo com o Instituto Socioambiental, e a companhia Vale S.A.

Essa etnia está processando a Vale por danos causados à sua população por três empreendimentos que a companhia opera ao redor da TI Xikrin do Cateté. O caso mais proeminente é o de Onça Puma, operação localizada seis quilômetros a oeste do território indígena. Segundo laudo da Universidade Federal do Pará, Onça Puma está contaminando o leito do rio Cateté com metais pesados, o que compromete a saúde e o modo de vida desses indígenas.

Agora a Vale está explorando – em caráter de pesquisa – uma área de manganês que incide ao sul da terra indígena dos Xikrin. A empresa diz que não desenvolve “atividades de pesquisa mineral ou lavra em terras indígenas no Brasil, sejam títulos minerários ou expectativas de direito”, mas em outubro informou à ANM que encontrou também cobre em seus trabalhos de prospecção em uma das áreas. Além disso, a Vale pagou as taxas anuais para manter ativo o requerimento para manganês incidente sobre a TI Xikrin do Cateté.

A Vale detém pelo menos 75 pedidos de mineração sobrepostos a territórios dos povos nativos do país, considerando apenas os que estão diretamente registrados em seu nome, sem incluir outras empresas do grupo. Mas a empresa informa que está desistindo dos processos – e de fato, o número era bem superior em janeiro, chegando a 137 pedidos de mineração incidentes em terras indígenas. “Embora conste do site da Agência Nacional de Mineração um número maior de processos em nome das empresas do Grupo Vale, a maioria foi objeto de renúncia/desistência por parte da própria Vale, estando pendente apenas a homologação da ANM ou indeferimentos por parte da própria agência”.

Tribo está contaminada, alerta cientista

A exploração dessa jazida de manganês incidente sobre a TI Xikrin do Cateté que está em nome da Vale pode agravar a condição de saúde dos habitantes da terra indígena. Segundo o pesquisador da Universidade Federal do Pará, Reginaldo Sabóia, que mediu a presença de metais pesados em amostras de cabelos dos índios, a tribo corre perigo. “Estes indígenas apresentaram um índice de contaminação por manganês de impressionar qualquer profissional com conhecimento de caso”, atesta Sabóia em um relatório de fevereiro do ano passado.

A maioria dos testes indicou uma taxa de presença de manganês no corpo dos indígenas 500% acima do percentual considerado seguro para humanos. Mas dois anciãos das aldeias, Kokono Xikrin e Painho Xikrin, já acumulam 2000% a mais do que o limite tolerável para manganês. “Impressionante”, escreve o pesquisador.

“Dos metais encontrados nos organismos dos indígenas, o manganês foi o que mais mostrou cumulação, e se não for mitigado urgentemente vai causar danos de saúde catastróficos e irreversíveis”, alerta Sabóia. Segundo uma pesquisa conduzida pela Fiocruz, a ação tóxica do manganês se revela imediatamente nos pulmões e no sistema nervoso central, “levando a manifestações clínicas, predominantemente, de esfera neurológica e à inflamação do trato respiratório superior”.

No início da pandemia de coronavírus, os indígenas da TI Xikrin do Cateté registraram o maior volume percentual de mortes por Covid-19 no Pará – uma doença que ataca os pulmões. Agora, todos já estão vacinados.

O professor Sabóia, da UFPA, atribui o alto índice de contaminação da população das aldeias aos empreendimentos da Vale S.A. A companhia nega que suas operações no entorno da terra indígena estejam poluindo o rio ou provocando impactos danosos na saúde dos habitantes locais. A discussão foi parar na Justiça, mas a tramitação do processo foi suspensa até o final deste ano. A decisão foi tomada em uma audiência de conciliação entre a Vale e os Xikrin e, segundo a companhia, tem “objetivo de criar um ambiente favorável e harmônico à construção, de forma conjunta e participativa, de acordo que possa encerrar ações judiciais”. A íntegra da resposta da Vale por ser lida aqui.

Carajás: floresta, indígenas e mineração

Os números revelados pelo projeto Amazônia Minada jogam luzes sobre a realidade da maior floresta tropical do planeta: ao mesmo tempo que é o lar de milhares de indígenas, a Amazônia guarda em seu subsolo preciosidades que provocam a cobiça de mineradoras e garimpeiros. A região onde os Kayapó vivem é especialmente propensa a conflitos porque abriga também a famosa província mineral de Carajás, uma localidade geologicamente privilegiada que oferece ao mundo ouro, cobre, ferro e manganês de qualidade excepcionais.

O manganês que aflora na província mineral de Carajás tem pureza de 80% graças ao tempo que levou para conquistar sua deposição atual. “Esse depósito foi formado há 2,75 bilhões de anos”, explica o geólogo Raphael Neto, do Serviço Geológico do Brasil. É uma medida difícil de imaginar para quem não está habituado, mas a conta chega a um tempo em que a região hoje coberta pela floresta era um imenso mar, quando a atmosfera da Terra ainda estava em formação. Primeiro dissolvido na água, logo impactado pelo surgimento do gás oxigênio e, por fim, remobilizado graças ao movimento das placas tectônicas, o metal acabou adquirindo qualidade incomum.

“Todo esse metal de Carajás é puro, é tudo o que uma mineradora quer porque diminui o custo para explorar”, complementa Neto.

Mas nem todos os depósitos de Carajás estão sendo explorados pelas empresas que possuem autorização, o que acabou atraindo garimpeiros que trabalham intensamente abastecendo o mercado ilegal. Segundo a ANM, há um foco grande de extração ilegal “especificamente sobre áreas em que se encontram direitos minerários de titularidade da Vale S.A., na região do Buriti e Sereno”.

Garimpo ilegal de ouro na Terra Indígena Kayapó. Foto: Felipe Werneck/Ibama.

Além das áreas destinadas à empresa que não estão sendo exploradas, em Carajás a Vale mantém a principal mina produtora de manganês do Brasil, Azul,  fechada desde o ano passado. Recentemente, a companhia vendeu parte dos direitos de mineração que possui na região à RMB S.A., que quer “ampliar sua participação no mercado nacional e internacional” do metal. Nem a RMB nem a Vale fornecem detalhes sobre a transação. “Estão sujeitas à confidencialidade”, complementa a Vale.

A reportagem apurou junto a autoridades que lavras em Carajás em nome da Mineração Buritirama – a maior produtora de manganês do Brasil – também estão sendo alvo de garimpagem. Essa companhia também está sendo investigada em razão do foco de garimpo de manganês na TI Kayapó, confirmado ao Amazônia Minada por uma fonte indígena e corroborado por relatório da Funai. Essa extração acontece nas proximidades de um empreendimento da empresa, distante cinco quilômetros da borda leste da TI, conforme a Repórter Brasil. Desde 2018, há inquérito civil no MPF sobre o caso, sob sigilo.

“Não compactuamos com qualquer prática ilícita”, informa a empresa. “Sempre que tomamos conhecimento de qualquer irregularidade, comunicamos ao Poder Público e às autoridades competentes”, complementa a Buritirama, cuja íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui.

Ao contrário do garimpo do ouro, que exige lavagem com mercúrio para filtrar as pepitas que serão vendidas – o que deixa um rastro de contaminação ambiental profundo -, a extração ilegal de manganês é feita de forma mecânica. Basta escavar o solo e peneirar. O problema, segundo o procurador da República do Pará Igor Goettenauer, que investiga ilegalidades na cadeia do manganês, é que os garimpeiros acabam explorando cada afloramento de uma maneira muito superficial. “Quando a mina fica mais funda, eles abandonam, então o dano ambiental é muito maior em extensão”, lamenta.

Esta reportagem faz parte do Amazônia Minada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

Imagem do banner: Katie Maehler/Apib Comunicação. 

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